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Como a vanguarda pode ser reacionária
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Daniel Benevides

Um exemplo é “A árvore da Vida”. Dirigido pelo celebrado artesão de “Além da Linha Vermelha”, Terence Malick, o filme tem roupagem modernosa, narrativa não linear e proposta não comercial, apesar de Brad Pitt e Sean Penn.

Mas seu espírito é antigo como o medo.

Aliás, como muitas obras surgidas depois do sorriso maligno de Bin Laden, que virou uma gargalhada explosiva há dez anos, o longa é mais uma resposta ao medo primitivo do vazio, da não-existência, é um retorno ao discurso escatológico do apocalipse, mas pronunciado de forma pretensiosa, restrito aos valores arcaicos de sobrevivência.

É como se todas as histórias tivessem caído junto com as torres gêmeas e só restasse o essencial, o impulso primitivo de viver, de procriar e de matar, se preciso. Nesse quadro, intensificado pela crise econômica de 2008, a natureza ganha força, assim como o núcleo familiar e a religião.

Terra, família e salvação. Soa familiar?

O filme começa citando Jó, aquele sujeito que sofria o diabo em nome de deus. E segue com vozes sussurrantes dos personagens em off, como se fossem espíritos do além.

Visualmente, repete os planos poéticos de Atrás da Linha Vermelha, mas num contexto pseudocientífico-religioso.

É de cair o queixo. De incredulidade. O tempo todo nos perguntamos: é isso mesmo que ele quer dizer? Morre um jovem, filho de uma família de Waco, Texas (não sei se é só coincidência, mas é a mesma cidade onde foram massacrados os seguidores de uma seita, em 1993).

A mãe, desconsolada, lança seus gritos para o céu. Uma vizinha ou parente diz a ela: “assim é a vida”.

E então, para surpresa de quem não pegou no sono, o filme vira, como disse um grande amigo, um documentário do tipo National Geographic, em tom mais sentimental.

Malick, pretenso sucessor de Michelangelo, faz do filme sua Capela Sistina: resolve mostrar o que é, fisica e metafisicamente, “a vida”.

Surgem imagens de nebulosas, ebulições solares, crateras sombrias, os luminosos aneis de saturno e finalmente a água batismal, onde tudo começa, em toda sua magnificência convulsiva, em toda sua profundidade insondável.

Mas não fica nisso. Malick vai além. Sugere células se dividindo, mircoorganismos se formando, até que vemos um dinossauro exausto à beira do mar.

Espera aí. Um, dinossauro? A cena é tão bizarra e involuntariamente cômica que poderia estar no meio de “O Sentido da Vida”, do Monthy Python. Seria perfeito.

Aí voltamos à família. O pai (Brad Pitt) devota um amor rigoroso aos filhos. A mãe é um espírito livre, imaginativo. Todos a amam. É a mãe terra. O filho mais velho tem traços de Caim, mas também de Édipo. Seu ódio pelo irmão bondoso e belo como um anjo toma proporções no limite da violência, sexuais, confusas.. Chega a puberdade e ele conspurca uma camisola roubada da vizinha, que tenta esconder como se fora um corpo assassinado.

É melhor nem continuar com as análises. Malick quis dizer tudo e acabou dizendo muito pouco. Ao fim, passado e presente fazem o looping da relatividade e todos, vivos e mortos, se encontram numa praia e se deixam encantar e ajoelhar (e dar as mãos?) diante da mesma água primeva que nos trouxe o dinossauro, o amor, o ódio, e o progresso desenfreado – que assume o rosto de Sean Penn, nosso Caim/Édipo, tornado megaempresário.

Não é mais do pó vieste, ao pó retornarás, mas sim da água. A água darwinista, a água batista, a água do sêmen do pecado, água freudiana. A água que afunda o filme, com todo o peso de suas pretensões.

É muito pra cabeça.

Mas é, otimismos à parte, sinal claro de que vivemos uma época de extremos.


O Mundo Girando
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Daniel Benevides

Ligo a TV e só se fala nos dez anos do 11 de setembro. Pego os jornais e lá estão as imagens do avião em ângulo estranho, como um tubarão visto de baixo, prestes a atacar, e da fumaça resultante, o fumo de um cachimbo da guerra. Lá estão as imagens dos prédios caindo, os gigantes que moravam no alto do pé de feijão. Lá está a imagem do homem caindo do céu, com um joelho dobrado, o que lhe confere uma elegância absurda, uma estranha dignidade.

O impacto é grande; é grande a comoção.

Mas há algo de terrível em toda essa comoção. Ela representa uma matemática diabólica, simboliza um aspecto cruel do mundo em que vivemos, mais ou menos comodamente.

É a matemática que diz, na sombra das manchetes, que um morto em solo estadunidense vale muito mais, centenas de vezes mais, milhares de vez mais, do que um morto em outros países, especialmente aqueles mais distantes, que são e foram em tantas ocasiões, vítimas dos mesmos Estados Unidos que hoje se colocam como a suprema vítima do terror globalizado.

Tudo o que gira em torno do 11 de setembro – a não ser a genuína dor pelo desaparecimento de entes queridos – parece mais uma grande ficção do que um fato histórico. E cada vez mais, à medida em que o tempo vai apagando as pistas do que realmente aconteceu e não é contado.

Ficção por ficção, é melhor ficar com alguns livros inspirados pelos ataques, como o excelente “Deixe o Grande Mundo Girar”, do irlandês radicado em Nova York, Colum McCann, sobre o qual escrevi aqui mesmo no UOL há um tempo.

 

 


A paixão de Gay Talese pela mãe de Borges
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Daniel Benevides

Borges e sua mãe, Leonor

Gay Talese tinha 30 anos. Era repórter do The New York Times quando recebeu a incumbência de entrevistar Jorge Luis Borges. Corria o ano de 1962. Borges já tinha publicado alguns de seus melhores livros, “Ficções” e “O Aleph”. Talese ainda buscava o estilo com o qual ficaria conhecido como um dos grandes jornalistas de história, autor de “A Mulher do Próximo” e “Fama e Anonimato”.

Como ele mesmo revela, num texto breve escrito recentemente, por ocasião dos 25 anos da morte de Borges, estava muito nervoso. Tão nervoso, na verdade, que ao chegar no lendário Algonquin, hotel que costuma receber a nata dos intelectuais que giravam em torno da The New Yorker (onde Talese escreveria, mais tarde), como Dorothy Parker e o editor Harold Ross, em libações homéricas, e dar de cara com o já cego mestre da literatura, teve olhos apenas para a mãe deste: “que, apesar de ter 85 anos, não aparentava mais de 60 e que, poderia acrescentar, era de uma beleza assombrosa para qualquer idade. Pensei que não podia ter sido mais bela nem quando tinha 25 anos”.

E o elogio continua, ocupando um espaço considerável numa matéria curta. Talese tinha apenas meia hora para conversar com Borges. Curiosamente, não falaram de sua obra. O texto, ao final, revela talvez a ignorância sobre os labirintos e espelhos do mestre argentino nos EUA, que viviam os anos exultantes da era Kennedy e ainda viam a América Latina como o quintal dos fundos.

A entrevista foi publicada no Babélia, suplemento literário do jornal espanhol El País.

Hoje também saiu aqui no UOL mesmo, uma resenha minha de “Borges Oral/Sete Noites”. Quem se interessou pelos escritos não-ficionais do viejo Brujo pode procurar também os livros “Outras Inquisições”, “Prólogos, com um Prólogo de Prólogos” e “Discurso”.