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Sadismo de pai pra filho
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Daniel Benevides

Laurence Olivier e Dustin Hoffman em The Marathon Man

De louco todo dentista tem um pouco. Meu amigo Luiz Thunderbird é dentista, o que reforça a impressão. (Se alguém precisar de mais exemplos, lembro que meu caro Formiga, repórter de esportes radicais na ESPN, também escarafuncha molares nas horas vagas)

Talvez por isso eu ache mais difícil me ajustar a um dentista do que comprar sapatos. Conheci o Dr. Armand por indicação de minha mulher; tendo a confiar nas indicações dela por conta de seu temperamento rigoroso, crítico e sua capacidade de discutir de igual pra igual com qualquer profissional, seja ele neurocirurgião ou químico.

Fato é que simpatizei com o sujeito de cara. Sua família vem da Armênia, o que lhe dá um toque de exotismo. (Até hoje não chequei se a Armênia de fato existe, como país reconhecido pela ONU – desconfio que não, o que só aumenta minha simpatia). E ainda por cima ele é a cara do Neil Diamond. Se começasse a cantar com gestos efusivos eu não estranharia.

Ocorre que Dr. Armand da Armênia tem, como todo dentista, um pai dentista de quem herdou o consultório. Mas no caso dele, herdou o consultório com o pai dentro. Trata-se de um velhinho vigoroso, de orelhas enormes, tufos fartos de pelos no nariz, que denuncia sua presença por sinistros ruídos que irrompem detrás de uma portinha no fundo. O que estará maquinando?

Nunca o tinha visto direito. Ele entrava e saía misteriosamente, como um atarefado funcionário do castelo de Kafka, fazendo a portinha, pivotante, balançar pra lá e pra cá. Até que o filho, para agradar ao pai ou por insegurança, decide convocá-lo para ajudar no meu caso. Súbito estavam os dois narizes enormes apontados pra mim. Encimados por olhares de especialistas, as duas gerações de apêndices nasais fugidos de um conto de Gógol, discutiam os procedimentos de tortura, como se eu fosse uma árvore à qual precisasse cortar um galho e não um ser humano aterrorizado.

Amputação
Tentei pensar nos soldados feridos da Guerra Civil Americana, que tinham suas pernas amputadas sem anestesia, à base de uísque e porrada na cabeça. Não adiantou. Por mais simpáticos que fossem os odontológicos armênios, me senti como uma cobaia na ilha do Dr. Moreau ou como se estivesse numa mesa de dissecação dentro de um OVNI. Acostumados à intimidade caseira, não tinham pudores em dizer que a broca tava esquisita ou que não tinham certeza se daria pra consertar o dente etc. Pra piorar, começaram a discutir. Não é assim que se faz, deixa que eu faço, dizia um. Tá errado, bradava o outro, ao que acrescentava: “você atingiu a gengiva sem necessidade. Eu te disse pra usar o outro alicate!”. Armand, com a respiração curta e gestos bruscos, ansiava por mostrar ao pai que era capaz; este, por sua vez, retrucava com o enfado impaciente de quem acumulou décadas de experiência.

Eu olhava pros dois e começava a ficar confuso, como se fossem a mesma pessoa convivendo em alguma curva estranha de tempo. Imaginava seus antepassados, pastoreando cabras e colhendo olivas. Ao mesmo tempo, sentia a respiração como se eu tivesse diante do monolito de 2001, uma odisséia no espaço. Em algum momento ouvi o mais novo dizer: “cruze os dedos pra que dê certo”. Tive então certeza de que não daria. Dito e feito: dissipada a alucinação, vejo o pai sentado, desolado com o resultado, dizendo que teriam de repetir tudo.

Pensam que saí correndo? Se o sadismo é ilimitado é porque há um masoquismo que o alimente. Pedi uísque. Riram. “Pode bochechar com aquele copinho, se quiser”. Apertei o apoio da poltrona com força e, sentindo-me um heroi da resistência, disse: “Recuso a venda, podem atirar”. E eles atiraram. Ao fundo, Paolo Conte cantava “Via con me”. Foi a última coisa de que me lembro.


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