O vento e a Mostra
Daniel Benevides
Todo mundo tem um ano decisivo na vida. O meu foi 1984. Eu estava perto de fazer 20 anos e estudava arquitetura na FAU, terceiro ano. Não sabia de nada, ou muito pouco. Muito menos o que fazer, que profissão seguir; sequer sabia se queria ter uma ''profissão''. Minha única certeza era o gosto apaixonado por tudo que abrisse uma porta para o novo.
Lia Cortázar, Baudelaire, Murilo Mendes e Yeats; lia Beckett, Stendhal e Flaubert com devoção e tentava entender Wittgenstein; descobria autores novos, com os quais me identificava, como Reinaldo Moraes, Ana Cristina César e Caio Fernando Abreu. E ouvia muito Lou Reed, David Bowie, Talking Heads, Clash, Sonic Youth, Nick Cave, Einsturzende Neubauten, R.E.M., Smack, Fellini, Voluntários da Pátria, Mercenárias, bandas que eu conhecia indo ao Madame Satã.
Mas foi talvez no útero da Mostra Internacional de São Paulo que eu entendi melhor o que eu queria, ainda que vagamente. Eu já tinha assistido alguns filmes de impacto em Mostras anteriores, no Masp, como ''Saló, 120 dias de Sodoma'', do Pasolini, ou o curdo ''Yol'' e as experiências pop-alternativas do cineasta Morrissey, da turma do Warhol.
84 no entanto foi especial. A Mostra tinha crescido e se mudado pro Cine Metrópole. E eu resolvi assistir todos os filmes que pudesse, mergulhar fundo mesmo, dar ao volta ao mundo na poltrona vermelha, me expor continuamente às irradiações da tela. Via até cinco filmes num dia só, e saía de lá como um zumbi, ao mesmo tempo hipnotizado pela força mágica de uma realidade paralela e imerso em mil pensamentos criativos (ou que eu supunha serem criativos), bolando livros, filmes, peças, espetáculos de dança contemporânea, instalações de arte, protestos políticos…e até edifícios.
Via o pequeno grande Leon Cakoff passando pra lá e pra cá, dando voltas nas invisíveis manivelas que movimentavam a Mostra. Lembro que eu quase não comia ou bebia, ficava só na poltrona, curioso para ouvir uma língua exótica, ver imagens de um país longínquo, espiar comportamentos novos para mim e principalmente conhecer ideias que a censura vetava.
Depois da exibição de ''Estado das Coisas'', do Wim Wenders, com aquelas imagens num hotel abandonado na costa portuguesa, aquela atmosfera de fim de mundo, de impossibilidade de terminar um filme, de concluir qualquer coisa, Leon subiu em alguma mesa, no palco, não lembro, e anunciou que a Mostra estava temporariamente fechada pela Ditadura. Foi como se cortassem minha cabeça. Mas a tenacidade de Cakoff trouxe a Mostra de volta, quatro dias depois. Foi um alívio poder me ausentar da vida de novo. E foi um alívio ainda maior, saber que na verdade, eu fazia parte ainda mais intensamente da vida, como um colaborador anônimo daquele forte reduto de resistência.