Blog do Daniel Benevides

Arquivo : setembro 2012

Dois grandes filmes. Ou: o que Tilda Swinton e Nanni Moretti têm em comum
Comentários Comente

Daniel Benevides

Definitivamente os italianos têm estilo – ao menos no cinema. Antonioni e Bertolucci, por exemplo, são dois incapazes de um plano chocho, sem graça. A lista é grande, e inclui Fellini, Argento, Bellocchio e tanti altri.

A cada filme, Nanni Moretti mostra que está nessa liga. Seu Habemus Papam é dos filmes mais elegantes e inteligentes dos últimos anos. Para começar, porque consegue a façanha de ser engraçado de chorar de rir e ao mesmo tempo profundamente melancólico. Complexo e propenso a várias interpretações, é de uma ironia demolidora com o Vaticano, mas também respeita, de alguma forma, o insondável da espiritualidade.

Ver os pomposos e hipócritas cardeais brigando num jogo de cartas e se esfalfando num torneio improvisado de vôlei, ou ainda cantando e dançando ao som de Mercedes Sosa, enquanto esperam a recuperação psicológica do papa recém-eleito é dos grandes momentos do cinema atual. Buñuel deve ter gargalhado do túmulo.

O francês Michel Piccoli oferece uma das melhores interpretações da sua carreira. Seu olhar de cansaço e perplexidade quando se vê nas vestes do sumo pontífice; seus acessos de pânico e irritação desesperada; sua nostalgia de uma juventude nunca aproveitada; seu gentil enfado com as manifestações de adoração inútil…Tudo nele é de uma grandeza humana que nos deixa pensativos e comovidos, entre as risadas proporcionadas por Moretti, no papel do psiquiatra (obviamente ateu) contratado para levantar o ânimo do papa.

Tilda
Tilda Swinton, em Um sonho de amor (péssima tradução para Io sono l’amore), também faz um dos melhores papéis de sua vida. E o diretor Luca Guadagnino desponta como bela promessa, mostrando as mesmas qualidades do melhor cinema italiano. Num ambiente aristocrático, imerso em rígida etiqueta e portanto algo claustrofóbico, uma família vai ruindo à medida em que os valores tradicionais vão dando espaço às liberdades de escolha.

Mãe de postura digna, mas que também sabe ser afetuosa, linda como nunca (Swinton é multiforme: consegue ocupar todo o espectro estético, da beleza à feiura), ela se apaixona pelo melhor amigo de seu filho favorito (e talvez mais do que isso, não fica claro), um jovem chef, tímido e talentoso, figura solitária e misteriosa. O que se segue é uma tragédia grega com as cores da discrição cheia de receios da alta burguesia. Não há gritos, mas sussurros; o choro é silencioso, as discussões são secas, o figurino nunca deixa transparecer o desalinho dos sentimentos. Em contrapartida, o amor é solto, naturalmente selvagem, inocente até, mesmo em sua intensidade quase incestuosa. A trilha é extraordinária, de autoria de John Adams, talvez o maior compositor vivo de música erudita contemporânea.

São dois filmes no fundo parecidos. Descascam a pompa dos poderosos e revelam a angústia dos que, presos na teia das aparências, anseiam por liberdade de sentimentos, desejos e atitudes.


A semântica do blowjob. Por que blow? Por que job?
Comentários Comente

Daniel Benevides

Christopher Hitchens era um cara divertido, mesmo com todo seu direitismo tardio. E corajoso. Seu relato dos últimos meses de vida é uma aula de estoicismo consciente.

Os que conviveram com ele são unânimes em dizer que era imbatível na conversa, no charme e na memória. Profunda e diversificadamente culto, era capaz de discorrer sobre qualquer coisa com graça e consistência.

Na compilação dos seus ensaios, Arguably, há grandes momentos sobre literatura e trechos provocativos, no melhor dos sentidos, sobre religião e política.

E também, na tradição filosófico/anedótica do Mitológicas de Barthes, textos fascinantes sobre qualquer coisa. E o popular blowjob é uma delas.

Hitchens se pergunta: afinal, por que blow? E por que job? Suck não seria mais apropriado? E aí envereda por uma série de argumentos tão eruditos quanto engraçados, com bons exemplos à guiza de ilustração, tirados de Nabokov (Lolita), Auden e Leonard Cohen (Chelsea Hotel), entre outros.

Uma das explicações seria que antigamente, para se referir ao ato que estranhamente chamamos de “soprar”, se falava na Inglaterra em “below job”. A contração seria uma consequência da forma sorrateira com que a expressão era pronunciada.

Outra possível razão adviria dos primórdios do jazz, gênero ainda subterrâneo nos anos 30, que forneceria os elementos para a metáfora óbvia. A imagem do “trabalho de sopro” teria sido então adotada pelos gays, como código, numa época em que soprar o saxofone ou a flauta de outrem era considerado perversão da grossa (a depender do instrumento, claro).

Hitchens vai mais longe e se pergunta também por que se diz que alguma coisa “sucks”, querendo com isso dizer que é algo ruim. Mas não é bom? Nós aqui usamos como xingamento, especialmente em jogo. (E já que mencionei o jeitinho brasileiro, não custa lembrar que somos muito mais diretos no que tange o blowjob: a palavra mais usada em nossas calçadas e camas refere-se a um dos primeiros objetos de prazer na infância, sem falar na junção habitual de boca e soquete).

Outra curiosidade é que não existe a/o blowjobber – mas existe o cocksucker, que não difere tanto do motherfucker, na intenção. Mais uma vez: é bom mas é ruim?

Lovelace

E o tal do job? A razão possivelmente está no fato de os “Below Jobs” serem pagos nos idos da Rainha Vitória. Prostitutas e putos seriam exímios jazzistas nessa época. Durante as muitas guerras do século 20, quando os soldados tinham de estar prontos e alertas a qualquer explosão na esquina e/ou tão cansados que tirar a roupa seria muito esforço, a prática do pagamento ou coerção pelo tal job era bastante comum. Hitchens cita a lendária Mickey Mouth, que na guerra do Vietnã era tida como a mais habilidosa no ramo em toda a Ásia. Sem contar que era uma forma de evitar (ou minimizar a possibilidade de) doenças.

Já a palavra Fellatio é mais explícita, apesar da pose. Quer dizer aquilo mesmo, sem mais nem menos. Nos países de língua portuguesa é felação, palavra feia, que poderia ser interpretada como atitude amarga (fel+ação).

Qual seja a palavra escolhida, o sexo oral praticado em homens – o nome para o feito em mulheres, cunilingus, é mais, hum, chique – tem sua deusa. É a trágica Linda Lovelace, a engolidora de espadas em Deep Throat, clássico absoluto do pornô.

Outra figura (e essa não trágica, mas patética) que ficou nos anais do blowjob foi a estagiária de Clinton – e o próprio, que, imbuído de pudor pragmático, declarou que o prazer de ver a moça tocar seu saxofone não era música, quer dizer, sexo. E talvez não apenas para preservar o casamento e sua posição honrada, mas também por ciúme. Afinal, sua estagiária botara a boca no trombone.


< Anterior | Voltar à página inicial | Próximo>