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Os Miseráveis e a invenção do cinema
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Daniel Benevides

cena do filme dos irmãos Lumière sobre Os Miseráveis

Quando Victor Hugo morreu, em 1885, faltavam dez anos para o cinema ser inventado. Ainda assim, o autor oceânico teve uma participação nada desprezível nos anos pioneiros da sétima arte; não exatamente ele, mas aquela que é considerada sua obra-prima, Os miseráveis.

Em primeiro lugar, uma coincidência: o primeiro dos cinco volumes originais do livro foi lançado em 1892, há 150 anos, mesma data de nascimento de Auguste Lumière, o mais velho dos irmãos que criaram o cinematógrafo, aparelho que, ao projetar imagens em movimento, espantou o mundo (literalmente: teve gente que saiu correndo da sala, aterrorizada com o trem que avançava na tela).

A dupla fraterna de inventores realizou vários filmes curtos, muitos deles mostrando cenas quotidianas. Alguns, no entanto, já apontavam para o embrião de uma arte narrativa. Destes, destaca-se justamente Victor Hugo et les principaux personnages des misérables, de 1897, breve resumo visual do livro, há muito um sucesso transcontinental.

Dez anos depois, a fascinante e injustamente pouco conhecida Alice-Guy Blaché, não apenas a primeira mulher a dirigir filmes, como também a primeira a dirigir um filme com estrutura narrativa (sobre a vida de Cristo) produziu uma versão cinematográfica de um dos capítulos do livro de Hugo, Sur la Barricade. (Ela ainda seria atriz, pioneira na criação de efeitos especiais, efeitos sonoros e também a primeira mulher a ter seu próprio grande estúdio cinematográfico, The Solax Company, nos EUA pré-Hollywood.)

cena do filme de Alice-Guy Blanché

Cerca de meia centena de outras adaptações de Os miseráveis para a telona (e mais um tanto para a telinha) foram lançadas nas décadas seguintes. Entre elas, a de 1935, com Fredric March e Charles Laughton, foi, quase oitenta anos antes do atual megasucesso, a primeira a ganhar uma indicação de melhor filme para o Oscar. O francês Claude Lelouch lançou uma versão peculiar do romance em 1995, com idas e vindas no tempo e efeitos narrativos do tipo “filme dentro filme”. Com Jean-Paul Belmondo, ganhou o Globo de Ouro na época, de melhor filme estrangeiro. Em 1998, o sueco Billie August também tentou a sorte com uma adaptação em Hollywood; no entanto nem o elenco estelar (Liam Neeson, Claire Danes, Uma Thurman) nem as críticas favoráveis tornaram o filme o sucesso que a versão atual vem atingindo.

No Brasil
Cineastas soviéticos, japoneses, mexicanos, egípcios, italianos, indianos, turcos e outros tantos também fizeram sua interpretação  cinematográfica do duelo mortal entre Valjean e Javert. Há até duas versões brasileiras! Ambas para a TV: uma dirigida por Dionísio Azevedo em 1958, com o brejeiro Rolando Boldrin no elenco; a outra de Walter Negrão, realizada em 1967, com Otávio Augusto (no papel de Valjean, salvo engano) e um certo Sílvio Abreu (!).

Haveria muito mais a falar sobre a fantástica permanência do livro de Hugo no imaginário popular – além dos filmes e musicais, há peças de teatro, “sequências” literárias, séries de TV (a vintage O fugitivo foi diretamente inspirada no romance) e revistas em quadrinhos com as desventuras de Fantine e Cosette. Chama a atenção, porém, uma adaptação de 1937 para o rádio – isso porque o diretor, produtor, roteirista e ator principal era ninguém menos que Orson Welles. Certamente ele, que também tinha uma atuação “oceânica” na cultura, deve ter se espelhado um pouco na imensa figura de Victor Hugo.


O pior Almodóvar
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Daniel Benevides

O problema de ver um filme muito depois da estreia, ou, como é o caso, depois que saiu dos cinemas (além, é claro, do fato de ver numa tela bem menor), é que as expectativas – boas ou ruins – vão se acumulando. E aí a decepção ou a boa surpresa podem ser maiores, e até bem maiores.

Aluguei A pele que habito com uma montanha de boas expectativas, já que acompanho os filmes do Almodóvar desde o começo da sua carreira – um dos meus favoritos é justamente o Maus hábitos, o anárquico longa de 1983 (caso raríssimo em que o título nacional é ainda melhor do que o original, Entre tinieblas).

As primeiras cenas até me animaram, com seus belos enquadramentos de bisturis e outros instrumentos cirúrgicos e a sensação de algo sinistro e ao mesmo tempo abstrato, como se a composição dos objetos transcendesse seu significado. As cores clínicas, meio azuladas, dão a impressão de falso conforto, prenúncio de algo inumano, de algum tipo de terror bizarro e estranhamente sereno.

Tudo isso se confirma, mas com um problema: ao contrário dos demais filmes de Almodóvar, não há uma gota de humor naqueles frascos e seringas. Maior qualidade do mestre espanhol, a mistura de ironia kitsch e melodrama não aparece em A pele que  habito (a não ser que se considere engraçada a canastrice de Antonio Banderas). Alguma graça chega a se insinuar no ritmo apressado das falas de Marisa Paredes, que parece estar sempre encarando o absurdo como se estivesse pechinchando legumes na feira – mas que na verdade está à beira de um ataque de nervos. Só que esbarra na beleza trágica da atriz Elena Anaya. Ela é tão intensa e sofrida, que nem mesmo a piada do nome vinga (Vera Cruz, a terra virgem descoberta).

A história batida do médico obcecado pela morte da mulher traz ecos de Frankenstein e Vertigo (Um corpo que cai), mas perde-se nas esquinas tortas do roteiro (nem por isso menos previsível).  Tudo é triste, incômodo, fácil. Pastiche solene (se é que isso é possível) do estilo que o próprio Almodóvar consagrou, A pele que habito parece daqueles filmes que se termina (de ver, de rodar) só por terminar – dá para imaginar o desânimo da equipe e dos atores durante as filmagens. Já os espectadores  se apegam aos longos 120 minutos, num voto teimoso de fidelidade ao diretor.


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