Blog do Daniel Benevides

Arquivo : Leonard Cohen

Algumas conexões entre rock e literatura
Comentários Comente

Daniel Benevides

Nick Cave e seu divertido e selvagem A morte de Bunny Munro

Há quem considere o rock “burro”, inculto, tosco. De fato, muitas bandas são assim – dentre elas, algumas das melhores (pense em Ramones, Black Sabbath ou AC/DC). Muito do rock, afinal, rola à base de testosterona juvenil, explosão adolescente, sexo pelo sexo e drogas pelas drogas. Até aí, nada de novo e nada de mal.

Mas há também bandas e cantores que se filiam a uma vertente mais “cabeça”, “sensível”, “literária”. As aspas são necessárias, pois há um oceano entre o poeta e escritor Leonard Cohen, autor de dois romances e vários livros de poesia,  e, por exemplo, o Steppenwolf, boa banda de hard rock, cuja conexão com a literatura está apenas no nome, tirado de O Lobo da Estepe, clássico hippie do Herman Hesse.

No fim das contas, à parte Cohen, Dylan, Lou Reed, Patti Smith, Serge Gainsbourg e Tom Waits (pra citar só alguns dos autênticos “roqueiros literatos”) é curioso ver que o escritor alemão/suiço de Sidarta e O jogo das contas de vidro não é o único a batizar bandas de rock.

Nosso caro Bruno Schulz, por exemplo, um dos mais interessantes escritores do século XX, autor cultuado de Lojas de Canela e Sanatório, inspirou uma banda polonesa. Que, por sinal, é bem razoável, na praia do rock dito alternativo. Dá uma olhada:

Outros exemplos? Dos clássicos há The Doors, nome tirado do livro As portas da percepção, de Aldous Huxley (que por sua vez tirou o título do poeta William Blake);  Steely Dan e Sof Machine escolheram seus nomes a partir da obra de William Burroughs (não à toa, um dos heróis do underground musical), e o The Fall (uma das minhas favoritas) inspirou-se em A Queda, de Albert Camus.

Dos menos conhecidos, há a Vulgue Tolstoi, banda brasileira, a House of Love (nome de um livro da Anais Nin), o outrora famoso Bronski Beat (Bronski é um personagem de O Tambor, livro do Nobel Gunther Grass) e a Birthday Party (outra das favoritas, nome de uma peça do Harold Pinter), primeira banda do Nick Cave (também um cara autenticamente “literário”, autor de dois romances).

Tem até duas bandas chamadas The Bell Jar, mesmo nome do livro em prosa da poeta Sylvia Plath: uma pseudo-Echo and the Bunnyman e a outra tipo death metal.

Claro que o genial Faulkner não ficaria de fora. O ótimo grupo Pylon, que foi uma referência para o R.E.M. do começo, foi batizado com o título de um livro do mestre William F, apreciador de belas pernas, uísque e belas letras. O mesmo fez a banda As I lay Dying, que nunca ouvira falar. Dando uma youtubada, deu para entender o porquê:  é trash metal genérico (que me perdoem os fãs, que não parecem poucos).

Para finalizar, tem a minha adorada The Triffids, injustamente esquecida banda australiana, cujo batismo surgiu da leitura do romance pós-apocalíptico The Day of the Triffids, uma espécie de Guerra dos mundos escrita pelo inglês John Wyndam. David MacComb, o grande vocalista e letrista morreu muito jovem, em 1999.

Bom, mais uma, vai – e outra australiana, também das preferidas deste escriba: The Go-Betweens, do chapa Robert Foster. O nome vem do clássico de L.P.Hartley, que já deve ter virado filme, série da BBC etc.


Leonard Cohen, o monge hedonista
Comentários Comente

Daniel Benevides

Encontrei na internet esse texto, que eu tinha escrito para a revista Vida Simples, para a qual eu colaboro com duas páginas sobre música há anos. Achei legal resgatá-lo, não só por causa do disco novo, o ótimo Old Ideas, mas também por conta da primeira edição brasileira de A brincadeira favorita, que acaba de ser lançada. Por alguma razão ta faltando o primeiro parágrafo, em que eu descrevia sua casa simples, caiada de branco, em que ele vivia na paradisíaca Hydra, ilha grega, ponto de encontro de artistas e bom-vivants nos anos 60.


Leonard Cohen tinha 25 anos e já havia lançado o primeiro livro de poemas, o elogiado Let Us Compare Mytologies, escrito aos 22, em 1956. Uma bolsa de estudos o levou para Londres, mas, desanimado pelo clima úmido, acabou se refugiando em Hydra, na Grécia, lugar festejado por alguns artistas e escritores (como Henry Miller, que descreveu sua beleza “nua e selvagem”). Foi nessa paisagem de luz e prazer, cercado de amigos e belas mulheres, ao som de acordeão e bouzuki (um típico instrumento grego), que se formou o compositor de “músicas para cortar os pulsos”, como o descreveu, ligeiramente maldoso, um jornalista.

A busca

De fato, Cohen nunca escondeu a depressão, e sua busca espiritual através do judaísmo e mais tarde do budismo, além do uso de antidepressivos, deixa clara a angústia. Mas o fino senso de humor e o charme modesto e sedutor de certa forma amenizavam a melancolia estampada em seus textos. Conseguia, como poucos, aliar na vida e obra a espiritualidade severa, disciplinada, ao hedonismo sensual, romântico, uma tarefa aparentemente impossível, mas que determinou seu estilo único.

Em Hydra, Leonard ainda escreveu três livros de poesia e dois romances. O primeiro, The Favorite Game (1963), é um relato autobiográfico de seus tempos de estudante em Montreal, onde nasceu, de pais judeus – seu avô era rabino e tinha escrito um volumoso livro de interpretações do Talmude. O segundo, The Beautiful Losers (1966), recebeu elogios da crítica, que o rotulou de “o mais ousado jovem escritor do momento”, por causa do erotismo explícito e nada ortodoxo do livro, além da originalidade formal. O livro se tornou um best-seller no Canadá e nos EUA.

O passo seguinte foi se mudar para Nova York, onde se hospedou no mítico Chelsea Hotel (cenário de uma de suas canções mais famosas, Chelsea Hotel Nº 2, em que descreve um encontro com Janis Joplin, um de seus inúmeros casos na época) e se tornou um observador da ebulição que animava a Factory, de Andy Warhol. E compunha inspirado pela própria vida, a Bíblia e os poemas flamencos de Garcia Lorca, seu grande ídolo.

A consagração

O primeiro disco, Songs of Leonard Cohen (1968), era chamado de “blues europeu”, não chegou a emplacar nos EUA, mas foi bem na parada inglesa e no resto da Europa, fato que iria se repetir, mais ou menos regularmente, com os discos seguintes. Na França, dizia-se até que se uma francesa tivesse um só disco, certamente seria um disco seu.

À essa altura, ele já fazia grandes turnês, em que mergulhava no vinho, nas mulheres e nos entorpecentes (ou estimulantes, de acordo com o caso). Era um período de autodestruição, muita confusão mental e hedonismo. Cohen (que nunca se casou) vivia um relacionamento difícil com Suzanne Elrod, mãe de seus dois filhos, Adam e Lorca.

A virada

Foi então que ele conheceu Roshi, um mestre do budismo zen, que seria um amigo valioso pelo resto da vida e determinaria sua decisão, por volta de 1994, quando estava prestes a fazer 60 anos, de se tornar monge e viver por seis anos no centro budista de Mt. Baldy, em Los Angeles, trabalhando como motorista e cozinheiro. Lá ele foi rebatizado como Jikan, que significa “o silencioso”. A aparente contradição está em perfeita harmonia com sua personalidade, que nunca cedeu às expectativas dos outros e sempre manifestou um gosto pela ambiguidade, ou, em outras palavras, por colocar mais questões do que respondê-las, de forma gentilmente provocativa.

A influência de Roshi se estendeu para sua obra, que deixou um pouco de lado o humor quase sarcástico do álbum de 1974, New Skin for the Old Ceremony, que surpreendeu pela variação de temas, arranjos e ritmos, e os equívocos de Death of a Ladies Man (1977), que trazia Bob Dylan e Allen Ginsberg nos backings de uma canção e Suzanne na capa. Em Recent Songs (1979) e principalmente em Various Positions, gravado depois de um longo período de reavaliação, em 1984, Cohen desaparece para em seu lugar surgir um compositor ainda mais sutil e profundo, com canções de grande “sensualidade espiritual”, como a belíssima Hallelujah, o que levou Dylan a comentar que eram como orações.

O tempo como cozinheiro do mestre e amigo Roshi, em que acordava todos os dias às 3 da manhã para trabalhar e meditar, rendeu um livro de poemas e desenhos, The Book of Longing, e um novo disco depois de nove anos. Ten New Songs (2001), meio soul, meio gospel, foi gravado em sua garagem e escrito em parceria com uma de suas backing vocals, Sharon Robinson. O reflexivo Dear Heather, três anos depois, traz letras mais diretas e uma voz mais rouca e sussurrada. É o efeito dos cigarros e de 70 anos bem vividos. Sobre a idade, aliás, ele disse, com serena sabedoria: “À medida que você envelhece, passa a ter menos interesse pela nova versão da realidade”.

No entanto, uma versão desagradável da realidade bateu-lhe à porta, na forma de um rombo de milhões em sua conta. Sua antiga empresária se aproveitou de sua ausência nos anos de monastério e roubou tudo o que pôde. A solução, benéfica para os fãs, foi partir numa longa turnê. Um dos shows, em Londres, foi gravado e lançado recentemente no Brasil (Live in London). Um álbum duplo, com tudo o que de melhor ele compôs.


< Anterior | Voltar à página inicial | Próximo>