Blog do Daniel Benevides

Só o vinil salva

Daniel Benevides

É um ritual.

Depois de fuçar em prateleiras apertadas em sebos, leva-se as aquisições pra casa com a ansiedade de colocá-las no prato e saboreá-las. Mas antes é preciso tirar o disco do encarte e avaliar seu estado; normalmente ele vai para a pia, para ser lavado com água, detergente e o lado macio da esponja, para então ser deixado no escorredor. O efeito é de ready-made: aquele objeto mítico, incoerente em meio a cumbucas e talheres, torna-se um totem, a promessa de um segredo revelado, de uma viagem ao redor do martelo, da bigorna e, principalmente (para efeitos de metáfora), do labirinto.

Seco, ele, o artefato negro, envelhecido pelo uso, mas intacto em sua preciosidade, revela as rugas entre os sulcos, microrriscos, tênues melomas melômanas, manchas quase imperceptíveis. Com as mãos nas bordas, vem o encaixe no toca-discos, o apertar de botões e acender de pequenas luzes, o posicionamento do braço sobre a primeira faixa e o suave pousar da agulha. E então alguns ajustes no mixer, no volume, nos baixos e agudos, algo simples.

O que se dá é um antídoto à nossa vida insubstancial: o Long-Play é um objeto de nostalgia sim, mas não dos tempos de juventude de quem hoje tem mais de quarenta anos; o disco de vinil representa a nostalgia do aspecto tátil, visual, lúdico da reprodução musical; representa também um momento em que as coisas têm causa e consequência claras (a agulha vibrando nos microssulcos e produzindo um sinal elétrico que, amplificado, ganha vida enquanto canção, sinfonia, Jam session, explosão); mais que isso: a valorização daquele instante, um instante que não pode ser levado pro carro ou pro skate, muito menos pro trabalho, ele só existe com aquela importância, aquela clareza sonora ali, naquele espaço, depois daquele ritual.


Gosto também da brevidade dos lados de um LP, o que impede que se deixe levar pela distração e se jogue a música para o fundo da sua percepção. Os 15, 20 minutos de um lado A ou B são perfeitos para o foco auditivo, para a completa imersão nos sons, com atenção aos detalhes, às texturas, à dinâmica, às letras. As capas, contracapas e encartes, essenciais para uma verdadeira audição, servem de guia e complemento estético.

É o oposto da “nuvem”, da compressão virtual, volátil, inexpressiva. (Que tem também seu valor, de outra ordem, bem mais pragmática, muleta para a ansiedade, atalho para a curiosidade). É melhor que o CD, pelo tamanho e qualidade sonora. E durabilidade.

Esse ano, como os anos anteriores, pratiquei o ritual vinílico várias vezes, cada vez com mais frequência. Passaram pela minha  capenga mas fiel Technics MK-2 pérolas de Macalé, Alceu Valença, Lee Halzelwood, Serge Gainsbourg, Miles, Eric Dolphy e Coltrane, Meters e James Brown, novidades como Tame Impala, Animal Collective e Beach  House, eruditos como Mahler, Stravinski e Philip Glass, surpresas incríveis do quilate de um Pedro Santos, sons fantásticos da África, Colômbia e Indonésia.

O que mais se pode querer?