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Livros que matam
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Daniel Benevides

Foi em Paris, em 1888. Ao buscar um livro na estante mais alta de sua biblioteca, o renomado pianista Charles-Valentin Alkan deu seu último suspiro, soterrado pelo peso de centenas de grossos volumes. Pode-se dizer em seu caso que a busca pela sabedoria saiu-lhe muito cara.

Talvez inspirado nessa lenda urbana, o catalão Enrique Vila-Matas imaginou um livro que provocasse a morte de quem o lesse. La asesina ilustrada, compreensivelmente, afugentou muitos leitores, quando lançado em 1977. Há quem diga que o sortilégio literário funcionou pelo menos duas vezes, mas os relatos são inconclusos.

Claro, há Os sofrimentos do jovem Werter, romance mais bem sucedido se considerarmos a premissa de Vila-Matas. Rejeitado pela mulher amada, o personagem inventado por Goethe se mata  . Tal gesto porém, saiu das páginas e atingiu centenas de jovens reais, os quais, profundamente movidos pela intensidade de sentimentos descrita, resolveram também por fim a suas vidas. Se a moda foi passageira, deixou marcas eternas.

Menos líricos, mas não menos intensos, muitos sábios chineses preferiram a morte a desfazer-se de seus livros, então proibidos pelo imperador Qin Shi Huang (o mesmo que construíra a Grande Muralha, cerca de duzentos anos antes de Cristo). Para ele, só prestavam livros que falassem de medicina, agricultura e previsão do tempo (Paulo Coelho e Zibia Gasparetto não teriam vez).

Distração diante da guilhotina

Marat também estava lendo quando foi surpreendido por sua assassina

Algumas dessas histórias estão no livro Fantasmas na Biblioteca, de Jacques Bonnet. Um dos maiores colecionadores do mundo, ele tem uma biblioteca de cerca de 40 mil volumes. Bem humorado, conta na sua autobiografia biblioliterária como construiu esse “paraíso na Terra” (na descrição de Borges) desde os tempos em que tinha de acondicionar suas preciosas raridades em estantes no banheiro e na cozinha, por falta de espaço.

As anedotas lembradas por Bonnet são muitas, entre elas a ocorrida em plena era do Terror, na Paris de Robespierre. No caminho para a guilhotina, levado pelos guardas, um aristocrata seguiu carregando um livro, o qual lia compenetrado, alheio aos gritos da multidão. Antes de ter a cabeça cortada, pediu ao carrasco que o deixasse terminar a página. E assim foi. Diante do interesse que desafiava a própria morte, é de se perguntar, até com certa avidez: que livro seria esse?

Mas a minha favorita é a do historiador e escritor Valincour (sucessor de Racine na Academia Francesa), um primor de sabedoria e estoicismo elegante. Após ver-se destituído de todos seus livros, queimados num incêndio que atingiu sua gigantesca biblioteca, disse, simplesmente: “Meus livros não teriam valido nada se eu não tivesse aprendido a viver sem eles.”


Bagunça sagrada
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Daniel Benevides

Não seria mau criar uma religião para arrumar os livros que teimam em se acumular nas paredes, em pilhas verticais, horizontais e diagonais, e despencam na cabeça com frequência bem maior que os meteoros. Mas teria de ser uma religião politeísta e onitolerante. Assim, os autores-deuses teriam seu lugar garantido na frente da estante e jamais seriam jogados fora.

Já os escritores terrenos, não sendo “de referência”, poderiam passar para as fileiras do fundo, no purgatório de madeira, ou, caso já bem lidos, ser gentilmente doados, não por desprezo teológico, mas porque o espaço e o tempo, como sabemos, são relativos (ou, diante das novas experiências, pós-relativos). O milagre da arrumação seria uma realidade empírica e até cientificamente comprovada.

Bastaria ser um devoto fanático, para eliminar o apego às coisas pedestres e tornar compulsório o estudo das escrituras sagradas. Estas, é claro, variariam de acordo com o fiel seguidor e com o estágio de vida de cada um.

No meu caso, as escrituras certamente estariam longe de ser sagradas no sentido pontifícico. Após um escrutínio íntimo e saudavelmente leviano, vi que meus deuses, ao menos nessa semana, seriam Beckett, Bolaño, Ballard, Tolstoi, Szymborska, Drummond, Kundera (como ensaísta), os Roth (Philip e Joseph), Vittorini, Duras, Carrère e Le Clézio.

Mas, como eu disse, varia. Nada impede que, daqui a um mês ou dois, Dalton Trevisan, Pynchon, Musil e Coetzee subam ao Olimpo das prateleiras que ficam mais ao alcance da mão. Aliás, Coetzee, pensando bem, já está. Assim como os caros Tony Judt, Bertrand Russell e Fausto Wolff.

O importante mesmo é identificar os mortais – especialmente os já lidos, e dispensá-los com leveza na alma, sem culpa nem arrependimento.

Sempre teremos a opção digital, no caso de querermos ressuscitá-los, por alguma razão afetiva (dedicatória, presente, guilty pleasure, amizade com o signatário da obra) ou erro de não-canonização. Lázaros literários, teriam sua segunda chance na ponta dos dedos. A justiça divina estaria resguardada.


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