Blog do Daniel Benevides

Categoria : Livros

10 razões para George ser seu Beatle favorito
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Daniel Benevides

Diga-me quem é seu Beatle favorito e direi quem és. George Harrison e Ringo Starr são as escolhas menos óbvias, claro. Ringo era o engraçado, o feioso simpático, o carente, que precisava de uma ajudinha dos amigos. Já com George, a coisa complica.

Se ele não era o músico de talento sinfônico e rosto de querubim, como o Paul, nem o gênio de humor ácido e transgressivo como o John, tinha qualidades que muitas vezes superavam a de seus parceiros – principalmente se considerarmos suas carreiras-solo.

Hoje faz exatos dez anos que George morreu. Para lembrá-lo, separei dez boas razões para ele ser ou se tornar seu Beatle favorito:

1- Era o mais cool, o silencioso, aquele cuja expressão denotava mistério e uma modéstia não isenta de ironia. Para muitas fãs era o mais bonito. E era o Beatle de humor mais fino, britânico. Quando policiais deram uma batida na sua casa, sua reação, extra-cool, foi essa: “Sou um cara organizado: guardo as meias na gaveta de meias e as drogas na gaveta de drogas”.

2- Foi o autor da primeira música gravada pelos Fab Four, um exercício instrumental chamado “Cry for a Shadow”, e  também da última: a sintomática “I me mine”

3- Aprendeu cítara sozinho, na marra (e depois se aprofundou no instrumento com Ravi Shankar). O uso da cítara em Norwegian Wood e Within you, without you foi decisivo para popularizar a cultura oriental no ocidente, assim como sua devoção à filosofia indiana

4- É dele a primeira faixa do melhor disco dos Beatles, “Revolver”. A música é Taxman. Ah, é dele também Here comes the sun, While my guitar gently weeps e Something…

5- Era amigo de grandes comediantes, como Peter Sellers e o pessoal do Monthy Python, de quem foi produtor em A Vida de Brian

6- Foi organizador do primeiro concerto beneficente da história, o Concert for Bangladesh, atitude que depois seria imitada por deus e o mundo (mais o mundo do que deus)

7- Lançou o primeiro álbum triplo de um artista solo, o brilhante All things must pass, logo depois do fim dos Beatles, e provavelmente o único triplo a atingir o primeiro lugar das paradas, tanto nos EUA quanto na Inglaterra

8- Era especialista em jardinagem zen ao mesmo tempo em que frequentava os boxes da Fórmula 1

9- Participou de um dos mais divertidos supergrupos da musica pop, os Travelling Willburys, com Bob Dylan, Tom Petty e o lendário Roy Orbinson

10- Gravou um grande disco já com o câncer que o mataria pouco depois bem avançado, Brainwashed, com a ajuda do filho único Dhani, mostrando serenidade até o fim.


Ave Marilyn
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Daniel Benevides

Marilyn na piscina de "Something's got to give", por Lawrence Schiller

Um livro com textos íntimos, fotos raras em que aparece seminua, revelações biográficas. Não há como errar: toda notícia nova sobre Marilyn Monroe irá despertar a curiosidade de qualquer pessoa, de carolas a junkies, de banqueiros a intelectuais.

Grande parte desse fascínio é mérito da própria atriz; mérito de suas curvas, de sua boca convidativa, de seu jeito de garota perdida na noite, que quer se encontrar nos braços de quem souber confortá-la e fazê-la sorrir, de sua voz, também cheia de curvas, infantil e provocante.

É uma adoração que se estende já por décadas, com direito a imagens sagradas, como os retratos de Warhol e a foto com o vestido esvoaçante, que teima em mostrar sua calcinha. O canto bêbado de parabéns ao presidente Kennedy já virou litania; a cicatriz revelada por Bert Stern tornou-se chaga; logo mais deve surgir algum tipo de santo sudário, quem sabe o lençol que ela usava no dia de sua morte, com resquícios de sua imaculada saliva, de seu imaculado baton…

Que o mundo inteiro é voyeur em alguma medida é óbvio. Mas porque a persistência de alguns mitos e outros não? O que realmente mantém Marylin no altar das fantasias, na cruz dos prazeres? Por que não Greta Garbo ou Rita Hayworth (pra ficar só no star system de Hollywood)?

Santa Marilyn, por Bert Stern

Morrer jovem, bela e em circunstâncias misteriosas “ajuda”, mas não explica tudo. Arrisco dizer que uma das razões está no fato de que ela se confundiu à imagem de seu tempo. Por onde se pense os anos 50 e 60, lá está ela: na política, ao lado dos Kennedy; no esporte, com o primeiro marido, o ídolo do baseball Joe DiMaggio; na literatura, depois que se casou novamente, dessa vez com o dramaturgo Arthur Miller (e mais tarde, por meio das biografias romanceadas por Norman Mailer e Joyce Carol Oates); nas artes plásticas, através de Warhol; na discussão sobre sexualidade e feminismo (Camille Paglia falava sobre o descompasso entre a encarnação do símbolo da liberdade sexual e sua real fragilidade, vulnerabilidade). E ainda há o cinema, a música e as mil teorias conspiratórias em torno da sua história breve e intensa.

Mas a adoração de Marylin tem também algo de conformismo. Mesmo ateus e agnósticos que veneram (“culturalmente”) sua imagem platinada mostram a necessidade de montar um panteão e colocar ali uma deusa. É o impulso atávico de plantar totens do “eterno” que sirvam de referência para marcar nossa transitoriedade, nossa precariedade, nossa impossibilidade de ser mais do que somos.

E em todos os sentidos não há totem (nem tabu) melhor que esse. A imagem de Marilyn tem um frescor de outro mundo. Nas fotos em que aparece seminua, como estas agora reveladas, feitas no set de “Something’s Got to Give”, filme inacabado, sente-se a temperatura de seu corpo, a maciez de sua pele, a consistência de sua carne. E isso porque ela está sempre nos chamando da jaula do inconsciente; tornamo-nos íntimos dela, é como se a víssemos todos os dias no café da manhã, bocejando de baby doll.

Você pode perguntar: e daí? Daí nada. Só me resta dizer, como todo mortal: Ave Marilyn.

 


George Harrison e o pai de Madonna e Tarantino
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Daniel Benevides

Se Elia Kazan foi o pai de Martin Scorsese, o próprio Scorsese é o pai de Madonna e Quentin Tarantino.

A primeira afirmação é fácil de explicar: Scorsese já declarou o quanto foi influenciado por Kazan, diretor dos clássicos “Sindicato de Ladrões”, “Vidas Amargas” e outros. Mais que isso, dirigiu um documentário sobre o mestre, que será exibido na Mostra de São Paulo.

Já a segunda talvez exija a locação de um DVD para entender. Foi o que eu fiz, inadvertidamente, ao ver o filme de estreia de Scorsese, “Quem bate à minha porta”, estrelado pelo amigo Harvey Keitel.

Praticamente um filme de pós-graduação, demorou cerca de quatro anos pra ficar pronto: Scorsese começou a filmar em 1965 e o título só apareceu num luminoso em 69. Isso por conta de grana, falta de tempo, dificuldade de agenda, dúvidas sobre o roteiro etc. Keitel tinha algum emprego burocrático na época e tinha de sec desdobrar para comparecer ao set, onde chegava a dormir, tamanho o empenho.

Valeu o esforço – o resultado é fascinante. Quando surgem os letreiros finais, fica a impressão de que estava muito adiante do seu tempo. Muito do que Tarantino popularizou em “Cães de Aluguel” e “Pulp Fiction” já estava lá, trinta anos antes: o uso criativo de música pop/rock/cool, os planos inusitados, nunca óbvios, a vida marginal e violenta dos personagens, o figurino vintage, as referências cinematográficas explícitas, os diálogos casuais e aparentemente deslocados, quase como sketches independentes do enredo. E por aí vai. Viciado em cinema, Quentin deve ter colocado os fotogramas desse filme numa seringa e tomado uma overdose.

E Scorsese vai ainda mais longe, misturando sexo livre à culpa cristã, imagens de mulheres e homens nus a closes de santos e Jesus na cruz, e tendo ao fundo a “piscanalítica” ‘The End”, dos Doors. A porta do confessionário se funde à porta da mulher desejada; os pés de Cristo confundem-se com as curvas de uma amante na cama; o olhar compungido de uma santa surge em fusão com uma cena de estupro. Keitel beija a imagem do Salvador e um filete de sangue escorre por sua boca. Impossível não pensar naquele famoso clipe da Madonna e seu Jesus negro, ou mesmo na forma como La Cicconne sempre misturou ícones católicos e imagens sexuais.

Relativamente pouco comentado, assim como o incrível “Alice não mo0ra mais aqui”, outro grande filme do começo da carreira de Scorsese, “Quem bate à minha porta” merece o crédito de pioneiro de uma estética que hoje virou quase regra entre moderninhos e descolados. Foda, pra dizer o mínimo.

“Taxi Driver”, no entanto, também um filmaço, continua a fazer barulho. E tem também espaço na Mostra de São Paulo, onde será exibido com cópia restaurada.

Outro Scorsese exibido recentemente no Brasil é “Living in the Material World”, documentário sobre o beatle silencioso, George Harrison. Agora no fim de novembro fará dez anos de sua morte. Escrevi há um tempo um perfil dele para a revista Vida Simples. Ficou bacana, tá aqui.

 


O vento e a Mostra
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Daniel Benevides

Todo mundo tem um ano decisivo na vida. O meu foi 1984. Eu estava perto de fazer 20 anos e estudava arquitetura na FAU, terceiro ano. Não sabia de nada, ou muito pouco. Muito menos o que fazer, que profissão seguir; sequer sabia se queria ter uma “profissão”. Minha única certeza era o gosto apaixonado por tudo que abrisse uma porta para o novo.

Lia Cortázar, Baudelaire, Murilo Mendes e Yeats; lia Beckett, Stendhal e Flaubert com devoção e tentava entender Wittgenstein; descobria autores novos, com os quais me identificava, como Reinaldo Moraes, Ana Cristina César e Caio Fernando Abreu. E ouvia muito Lou Reed, David Bowie, Talking Heads, Clash, Sonic Youth, Nick Cave, Einsturzende Neubauten, R.E.M., Smack, Fellini, Voluntários da Pátria, Mercenárias, bandas que eu conhecia indo ao Madame Satã.

Mas foi talvez no útero da Mostra Internacional de São Paulo que eu entendi melhor o que eu queria, ainda que vagamente. Eu já tinha assistido alguns filmes de impacto em Mostras anteriores, no Masp, como “Saló, 120 dias de Sodoma”, do Pasolini, ou o curdo “Yol” e as experiências pop-alternativas do cineasta Morrissey, da turma do Warhol.

84 no entanto foi especial. A Mostra tinha crescido e se mudado pro Cine Metrópole. E eu resolvi assistir todos os filmes que pudesse, mergulhar fundo mesmo, dar ao volta ao mundo na poltrona vermelha, me expor continuamente às irradiações da tela. Via até cinco filmes num dia só, e saía de lá como um zumbi, ao mesmo tempo hipnotizado pela força mágica de uma realidade paralela e imerso em mil pensamentos criativos (ou que eu supunha serem criativos), bolando livros, filmes, peças, espetáculos de dança contemporânea, instalações de arte, protestos políticos…e até edifícios.

Via o pequeno grande Leon Cakoff passando pra lá e pra cá, dando voltas nas invisíveis manivelas que movimentavam a Mostra. Lembro que eu quase não comia ou bebia, ficava só na poltrona, curioso para ouvir uma língua exótica, ver imagens de um país longínquo, espiar comportamentos novos para mim e principalmente conhecer ideias que a censura vetava.

Depois da exibição de “Estado das Coisas”, do Wim Wenders, com aquelas imagens num hotel abandonado na costa portuguesa, aquela atmosfera de fim de mundo, de impossibilidade de terminar um filme, de concluir qualquer coisa, Leon subiu em alguma mesa, no palco, não lembro, e anunciou que a Mostra estava temporariamente fechada pela Ditadura. Foi como se cortassem minha cabeça. Mas a tenacidade de Cakoff trouxe a Mostra de volta, quatro dias depois. Foi um alívio poder me ausentar da vida de novo. E foi um alívio ainda maior, saber que na verdade, eu fazia parte ainda mais intensamente da vida, como um colaborador anônimo daquele forte reduto de resistência.


Neste Dia da Criança, dê um Jeff Koons de presente
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Daniel Benevides

A infância é uma região de traumas e desejos inconfessáveis, dizia Freud, mas no senso comum é também a região da felicidade perdida (o que pode ser a mesma coisa), ou simplesmente sinônimo de felicidade (o que já é bem diferente).

O superartista plástico Jeff Koons, mentor da legião do neopop, e criador de enormes balões infláveis feitos de aço, que, na melhor das hipóteses, sugerem um balanço transcendente de materiais, parece acreditar mesmo na definição mais simples.

Na sabatina da qual participei, promovida pela Folha de S.Paulo e UOL, em que o artista, um dos principais nomes da exposição Em Nome dos Artistas – Arte Contemporânea Norte-Americana na Coleção Astrup Fearnley (que tem ainda os sensacionais Matthew Barney, Cindy Sherman e o também controvertido Damien Hirst), respondeu a perguntas de críticos e jornalistas, e também do público e internautas, Koons colocou-se como o arauto da arte como autoajuda, um papel que surpreendeu boa parte da plateia presente no Auditório Ibirapuera e também meus colegas de “mesa”, os críticos Fabio Cypriano, Lisette Lagnado e a editora da Ilustrada Fernanda Mena.

Candidamente, aquele que muitos pensavam ser o Grão-mestre da ironia e cinismo, desfiou sua teoria estética de salvação: a arte, quando remete a confortadoras lembranças de um passado de idílio infantil, seria capaz de afastar a ansiedade provocada pela turbulenta contemporaneidade.

Cicciolina
Compondo a cena de seu discurso, Koons, famoso pelas polêmicas provocadas com as esculturas em que aparece trepando com a então mulher, a atriz pornô e ex-deputada na Itália, Cicciolina, envergava um terno sóbrio de pastor adventista ou consultor de marketing.

Metade do público exultava a cada exibição de slides de sua obra, que inclui um gigantesco cãozinho feito de flores e monumentais bexigas em forma de cachorro e coelho, moldadas em aço. Mais que isso, parecia exultar a cada declaração desconcertante, aparentemente ingênua, do tipo “sou um romântico”. E, pelo que eu soube mais tarde, muitos ficaram pessoalmente ofendidos com a suposta agressividade de nós, sabatinadores.

O enigma ficou instalado na garganta: afinal, Koons é um gênio, como se autoproclamava seu ídolo na adolescência, o histriônico Salvador Dali, ou uma espécie de Forest Gump, alguém que meio por acaso, sem os atributos necessários, ganhou espaço na História?

Conversando com a artista Lucia Koch, fiquei convencido de que a resposta é : nem um nem outro. Koons tem sim um lado genial, que se afirma quando vemos de perto algumas de suas obras expostas no prédio da Bienal. O estranhamento que provoca a tensão dos materiais, o aço que “flutua” e é “translúcido” (no caso dos incríveis balões), ou o suporte que se mescla à suposta escultura (caso da centopéia na escada, ambos fundidos numa só peça de alumínio), e principalmente o equilíbrio fascinante das bolas de basquete imersas num tanque de água (para muitos, sua melhor obra) fazem jus aos exaltados elogios.

Conceitual naïf
Ao mesmo tempo, fica a impressão de uma arte que é conceitual, e portanto cerebral, “inteligente”, “bem sacada”, fenômeno cínico de marketing, mas também naïf, feita de paixão juvenil e brilho involuntário (e não por isso menos impressionante). E isso mais por conta de suas justificativas à Paulo Coelho (com um quê de Walt Disney – quase perguntei se ele já tinha pensado em criar uma Koonsland, um pouco como a terra perdida de um dos ícones que retratou em porcelana, Michael Jackson).

É possível que, como disse Lúcia, ele tenha mudado em algum momento (talvez depois do sofrido rompimento com Cicciolina), tenha cansado do papel de cínico manipulador de imagens pop, e tenha preferido justamente criar um novo personagem, bem menos óbvio, bem mais provocador, que é esse Jeff Gump, esse pastor que prega a felicidade pueril pela arte, que afirma, em tom conscientemente ou inconscintemente demagógico, que o artista tem de estar onde está o desejo mais imediato do espectador, o desejo de esquecer contextos, teorias e responsabilidades, e lançar-se sem culpa à fruição de uma acolhedora infantilidade.


Nobel de literatura: ganhou o cavalo da casa
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Daniel Benevides

Uma multidão se acotovela diante de um púlpito pequeno. É nele que será anunciado, em um minuto e 43 segundos, o prêmio Nobel de literatura.

O burburinho é forte. Quem terá cruzado em primeiro a linha final? Escritor, afinal, come a alfafa que o diabo plantou. É também cavalo, como dizem as casas de aposta Ladbrokes, Unibet e outras.

Eis que uma porta alta se abre e dela surge um sujeito careca com um papel na mão. A mão dos fotógrafos, por sua vez, se agita, muitos disparam antes da hora, ansiosos demais. Desconfio que Kafka, que nunca recebeu o Nobel, teria rido de chorar da cena, um misto de pomposidade papal e certa pequenez burocrática.

Sem delongas, o sujeito lê o resultado. Lê em sueco, mas dá para entender o nome. Ganhou o favorito na casa de apostas Ladbroke. É o cavalo da casa, Tomas Tranströmer. Quem?

Procuro no ponto G, de google. Ele parece bacana. A Agulha, revista cultural de Fortaleza, tem um artigo sobre ele, de 2007. Luís Costa conta que é adorado na Suécia e foi traduzido para várias línguas. Vive isolado numa ilha, como Saramago. E teve um AVC em 1990, mas continuou a escrever e até mesmo a tocar piano, uma de suas outras atividades.

Tomas é ainda psicólogo, daqueles que vão a presídios, hospícios e casas de correção para adolescentes. A cara dele (na foto, quando jovem) é simpática.

Trecho de um de seus poemas, traduzido por Luiz Costa, em português de Portugal:

Ao entardecer,
saímos.
A poderosa pata azul
escura da meia ilha jaz expelida sobre o mar.
Embrenhamo-nos na
multidão, somos empurrados, amigavelmente,
suaves
controlos,
todos falam,
fervorosos, na língua estranha.
“ Um homem não é uma
ilha “
Por meio deles
fortalecemo-nos, mas também por meio de
nós mesmos. Por meio
daquilo que
existe em nós e que
o outro não consegue ver. Aquela coisa
que só se consegue
encontrar
a ela própria. O
paradoxo interior, a flor da garagem, a válvula
contra a boa
escuridão.
Uma bebida que
borbulha nos copos vazios. Um altifalante
que propaga o
silêncio.
Um atalho que, por
detrás de cada passo, cresce e cresce.
Um livro que só no
escuro se consegue ler.

São imagens translúcidas que nos dão acesso à realidade, como diz a Academia. Há vários livros seus em inglês, mas arece que não foi traduzido no Brasil. Se  é fato, será outra correria, outras apostas. Os cavalos dessa vez, serão os editores.

 


Nirvana, REM e o Rio do suposto Rock
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Daniel Benevides

Não vi nada do Rock in Rio, o que talvez não tenha feito diferença. Pro festival com certeza não fez. Se fez pra mim, é algo que tenho que debater com meus botões. Como estou de zíper e camiseta, fica pra amanhã.

O pouco que sei foi por tabela. Li, por exemplo, o ótimo texto do Maurício Stycer. E vi a Christiane Torloni “chapadona” dando entrevista pra Globo.

O vídeo ilustra o texto à perfeição. Stycer pergunta: “cadê a rebeldia do rock”? Tá na Torloni? Tá no discurso do Dinho Ouro Preto? No “merchan” do A. Kiedis? Tá no rock macarrônico do Mike Patton?

Mais fácil encontrar rebeldia na Rihana. O que me leva ao Nirvana e ao REM.

Duas bandas irmãs, duas bandas incríveis, mas que de certa forma, e involuntariamente, como lembra o filósofo José Rodrigo Rodriguez, talvez sejam responsáveis pela pasmaceira reinante.

Isso porque foram eles (e os Pixies) que puseram melodia no punk e levaram o mundo do rock alternativo ao topo das paradas. Sem querer, deixaram que a Billboard, representante mais visível da indústria, engolisse a rebeldia, tal como Saturno a seus filhos.

Kurt Cobain, apesar de buscar conscientemente o sucesso, nunca se deu bem com essa idéia depois que ela virou realidade. Seu espírito autodestrutivo se revelou em shows como aquele do Hollywood Rock em São Paulo, em meados dos anos 90.

Eu trabalhava na MTV nessa época e vi ele de perto. Um cara bacana, franzino, de ombros curvados e uma expressão inofensiva, mas com um ligeiro brilho maníaco no olhar.

Seus parceiros, Dave Grohl e Krist Novoselic, com quem conversamos (o grande reverendo Fabio Massari e eu, atrás da câmera) pareciam viver num suspense contínuo, sem saber quando o coração de “Kurtz” Cobain mergulharia nas trevas.

Foi um show inesquecível. Não no sentido positivo, pelo som, mas pela visão de um sujeito de grande talento perder o controle (ou controlar sua perda) e chutar, socar, espatifar o balde. A gente não sabia, mas talvez desconfiasse: era um dos muitos sintomas de um suicídio anunciado.

Nevermind, o disco-razão de tudo isso, fez 20 anos. Hoje toca em elevador de shopping. Precisa dizer alguma coisa?

Um dos interlocutores de Cobain era Michael Stipe, vocalista e letrista do REM, a quem ele admirava. O REM foi por muito tempo afinal, bem antes de Losing my Religion, uma autêntica banda de garagem com cérebro, um “rótulo” que não ficaria mal no próprio Nirvana.

Não lembro se conheciam-se bem, lembro que se falavam muito ao telefone. Depois veio o tiro no céu da boca, o bilhete mítico, o novo belo cadáver do pop (hoje já substituído por Amy W.)

 

 

E agora o REM acabou, deixando muitos órfãos. Não me incluo entre eles, ainda que concorde com a amiga Nina Lemos: o quarteto de Athens fez a melhor trilha (ou uma delas) da nossa geração.

Na verdade achei bom que o REM tenha acabado. O mundo está mais careta. É preciso encontrar novas formas de rebeldia. E o REM conseguiu atravessar esses tempos sem um único disco ruim no currículo (e com pelo menos duas obras-primas).  É muito mais do que fez a maioria das bandas.

Os três (já que em 97 um aneurisma levou o batera Bill Berry de volta pra roça) devem ter cansado: do rock, das longas turnês na estrada, da convivência forçada entre eles,  das obrigações contratuais, de gritar para os surdos.

Tô escrevendo em círculos, mas a palavra que liga tudo isso acho que é autenticidade. Algo não muito fácil definir, mas que tanto o REM como o Nirvana  tinham de sobra e faziam questão de não perder.

Pra isso, a saída de um foi o suicídio. A de outro foi a permanência digna no palco, sem abrir mão de seus princípios.

O REM já tocou no Rock in Rio, na terceira edição, assim como Grohl e seu Foo Fighters. Foi um grande show, como quase todos do REM que se tem notícia. Não sei se Christiane Torloni estava lá.

Eu não vi.


PARA QUÊ SERVEM OS PRÊMIOS?
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Daniel Benevides

Passou uma semana ou quase isso e eu não consigo tirar da cabeça o prêmio dado a Keith Richards de melhor escritor do ano pela revista GQ (a inglesa).

Como fã dele achei divertido. Mas aquilo me incomodou, por mais que o prêmio em si não tenha muita importância.

Talvez porque seja mais um exemplo de como o cinismo e o oportunismo florescem com tanta facilidade no meio cultural (e em todos os outros meios).

Qual deveria ser, afinal, o papel de um prêmio? Em primeiro lugar, incentivar novos talentos, que precisam desse tipo de exposição para serem conhecidos. Em segundo, reconhecer a excelência de um trabalho, seja de um veterano ou de um novato. Qualquer outro motivo me parece pouco honesto.

“Vida”, a autobiografia de Keith, é legal, um adjetivo que significa igualmente legítima e bacana. Mas tá longe de ser literatura, boa ou ruim. A ironia maior é que ele talvez não tenha nem escrito uma linha, já que há um parceiro jornalista no projeto, que teria feita toda a exaustiva pesquisa sobre sua vida.

Keith deve olhar o prêmio na sua estante e rir sozinho. Ainda mais ele, que se diz leitor e já citou James Joyce em entrevistas.

É evidente que a revista quis premiar a si mesma, chamando a atenção do público, buscando a visibilidade pelo choque fácil. Basta ver que deram o prêmio de melhor músico ao renascentista Hugh Laurie, o House (que por acaso também escreve livros). E ele é bom, de fato, mas o melhor? Dificilmente.

A gente vive soterrado pela avalanche midiática diária, que às vezes nem se dá conta de como os valores são frequentemente trocados pelos interesses.

Até o Nobel e em escala menor o Jabuti, vira e mexe surgem com escolhas duvidosas – no caso do Nobel nunca por razões cínicas ou financeiras, mas políticas (ou “humanísticas”), o que também não serve para o debate cultural honesto. O fato de Borges ter apoiado a sangrenta ditadura argentina – fato em si lastimável – não faz com ele deixe de ser o escritor latino-americano mais influente do século 20 e portanto merecedor do Nobel, o qual nunca recebeu (assim como Joyce, Kafka, Proust…a lista é grande).

Eu lembro que o (mais que justamente) cultuado Roberto Bolaño falava de como os prêmios eram importantes pra sua carreira. Por um tempo, eram os prêmios que o sustentavam. Ele chegava a se inscrever, usando pseudônimos, em dois ou três concursos de literatura ao mesmo tempo. E ganhava muitos.

Se a GQ inglesa queria fazer da premiação uma vitrine para si mesma, poderia ao menos criar categorias mais condizentes com seu intuito, originais, engraçadas, divertidas. No lugar deles, eu daria, por exemplo, o prêmio de fato banal mais importante do ano para as fotos da linda Scarlett Johansson. Por três dias, o corpo nu da musa roubou a cena de todas as manchetes do mundo e ainda movimentou o FBI. Afinal, a gente não quer só comida, a gente quer a bunda e os peitos da Scarlett.

Longa vida a a Scarlett e Keith, mas também longa vida aos prêmios autênticos, especialmente os literários – quem já escreveu um livro, sabe como é difícil, solitária e mal remunerada a atividade de Thomas Mann e Patativa do Assaré.


Como a vanguarda pode ser reacionária
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Daniel Benevides

Um exemplo é “A árvore da Vida”. Dirigido pelo celebrado artesão de “Além da Linha Vermelha”, Terence Malick, o filme tem roupagem modernosa, narrativa não linear e proposta não comercial, apesar de Brad Pitt e Sean Penn.

Mas seu espírito é antigo como o medo.

Aliás, como muitas obras surgidas depois do sorriso maligno de Bin Laden, que virou uma gargalhada explosiva há dez anos, o longa é mais uma resposta ao medo primitivo do vazio, da não-existência, é um retorno ao discurso escatológico do apocalipse, mas pronunciado de forma pretensiosa, restrito aos valores arcaicos de sobrevivência.

É como se todas as histórias tivessem caído junto com as torres gêmeas e só restasse o essencial, o impulso primitivo de viver, de procriar e de matar, se preciso. Nesse quadro, intensificado pela crise econômica de 2008, a natureza ganha força, assim como o núcleo familiar e a religião.

Terra, família e salvação. Soa familiar?

O filme começa citando Jó, aquele sujeito que sofria o diabo em nome de deus. E segue com vozes sussurrantes dos personagens em off, como se fossem espíritos do além.

Visualmente, repete os planos poéticos de Atrás da Linha Vermelha, mas num contexto pseudocientífico-religioso.

É de cair o queixo. De incredulidade. O tempo todo nos perguntamos: é isso mesmo que ele quer dizer? Morre um jovem, filho de uma família de Waco, Texas (não sei se é só coincidência, mas é a mesma cidade onde foram massacrados os seguidores de uma seita, em 1993).

A mãe, desconsolada, lança seus gritos para o céu. Uma vizinha ou parente diz a ela: “assim é a vida”.

E então, para surpresa de quem não pegou no sono, o filme vira, como disse um grande amigo, um documentário do tipo National Geographic, em tom mais sentimental.

Malick, pretenso sucessor de Michelangelo, faz do filme sua Capela Sistina: resolve mostrar o que é, fisica e metafisicamente, “a vida”.

Surgem imagens de nebulosas, ebulições solares, crateras sombrias, os luminosos aneis de saturno e finalmente a água batismal, onde tudo começa, em toda sua magnificência convulsiva, em toda sua profundidade insondável.

Mas não fica nisso. Malick vai além. Sugere células se dividindo, mircoorganismos se formando, até que vemos um dinossauro exausto à beira do mar.

Espera aí. Um, dinossauro? A cena é tão bizarra e involuntariamente cômica que poderia estar no meio de “O Sentido da Vida”, do Monthy Python. Seria perfeito.

Aí voltamos à família. O pai (Brad Pitt) devota um amor rigoroso aos filhos. A mãe é um espírito livre, imaginativo. Todos a amam. É a mãe terra. O filho mais velho tem traços de Caim, mas também de Édipo. Seu ódio pelo irmão bondoso e belo como um anjo toma proporções no limite da violência, sexuais, confusas.. Chega a puberdade e ele conspurca uma camisola roubada da vizinha, que tenta esconder como se fora um corpo assassinado.

É melhor nem continuar com as análises. Malick quis dizer tudo e acabou dizendo muito pouco. Ao fim, passado e presente fazem o looping da relatividade e todos, vivos e mortos, se encontram numa praia e se deixam encantar e ajoelhar (e dar as mãos?) diante da mesma água primeva que nos trouxe o dinossauro, o amor, o ódio, e o progresso desenfreado – que assume o rosto de Sean Penn, nosso Caim/Édipo, tornado megaempresário.

Não é mais do pó vieste, ao pó retornarás, mas sim da água. A água darwinista, a água batista, a água do sêmen do pecado, água freudiana. A água que afunda o filme, com todo o peso de suas pretensões.

É muito pra cabeça.

Mas é, otimismos à parte, sinal claro de que vivemos uma época de extremos.


O Mundo Girando
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Daniel Benevides

Ligo a TV e só se fala nos dez anos do 11 de setembro. Pego os jornais e lá estão as imagens do avião em ângulo estranho, como um tubarão visto de baixo, prestes a atacar, e da fumaça resultante, o fumo de um cachimbo da guerra. Lá estão as imagens dos prédios caindo, os gigantes que moravam no alto do pé de feijão. Lá está a imagem do homem caindo do céu, com um joelho dobrado, o que lhe confere uma elegância absurda, uma estranha dignidade.

O impacto é grande; é grande a comoção.

Mas há algo de terrível em toda essa comoção. Ela representa uma matemática diabólica, simboliza um aspecto cruel do mundo em que vivemos, mais ou menos comodamente.

É a matemática que diz, na sombra das manchetes, que um morto em solo estadunidense vale muito mais, centenas de vezes mais, milhares de vez mais, do que um morto em outros países, especialmente aqueles mais distantes, que são e foram em tantas ocasiões, vítimas dos mesmos Estados Unidos que hoje se colocam como a suprema vítima do terror globalizado.

Tudo o que gira em torno do 11 de setembro – a não ser a genuína dor pelo desaparecimento de entes queridos – parece mais uma grande ficção do que um fato histórico. E cada vez mais, à medida em que o tempo vai apagando as pistas do que realmente aconteceu e não é contado.

Ficção por ficção, é melhor ficar com alguns livros inspirados pelos ataques, como o excelente “Deixe o Grande Mundo Girar”, do irlandês radicado em Nova York, Colum McCann, sobre o qual escrevi aqui mesmo no UOL há um tempo.