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As polaroides de Gainsbourg
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Daniel Benevides

Tive o prazer de ser convidado pela Cassiana Der Haroutiounian para escrever no seu ótimo blog de fotografia Entretempos . Resgatei o texto:

Jane, par Serge

Lembro até hoje da sensação de segurar uma máquina polaroid nas mãos.

Era um formato estranho, anguloso, com uma fenda horizontal na frente, que mais parecia a boca de um sapo. Branca, tinha, se não me engano, umas faixas em preto, amarelo e vermelho.

Meio teletransportadora, a máquina atingia o ser ou objeto à sua frente com um raio, e o aprisionava em duas dimensões; alguns segundos depois, o sapo mostrava a língua.

Uma moldura branca, feita de algum tipo de papel duro, envolvia uma superfície indefinida, que parecia meio molhada.

Segurando com os dedos em pinça na borda, abanávamos a foto com ansiedade, eufóricos com a mágica que se faria.

De repente, como se viesse do fundo de um lago, conseguíamos divisar pequenos indícios de que uma imagem estava se formando. Era realmente mágica, não tinha outra explicação.

Em menos de um minuto se dava a revelação – e, por mais que já soubéssemos o que seria, era sempre uma revelação, como se víssemos os futuro na borra do café, ou nas entranhas de uma ave.

Bem, tudo isso para contar do meu fascínio pela polaroid. E qual não foi minha surpresa ao ver as imagens que Serge Gainsbourg, de quem sou (ou era) um humilde discípulo, havia feito com aquele mesmo aparelho que tanto havia marcado minha pré-adolescência?

Minha admiração pelo autor de “Je t’aime moi non plus” aumentou ainda mais. Quer dizer: ele pintava e desenhava bem, escreveu um romance, havia criado um estilo até hoje único na história da música pop, tinha casos com as mulheres mais lindas do planeta e ainda era craque na polaroid???

Essa imagem da musa Jane Birkin é minha favorita. Tanto quanto o próprio Gainsbourg, que era uma versão dândi do sujeito dividido entre suas porções Jeckyll e Hyde (brilhante e canastra, romântico e misógino, lírico e cínico, pai amoroso e alcoólatra canalha, velho rabugento e doce como uma criança), Jane curvada sobre o próprio corpo nu provoca impressões as mais diversas e aparentemente contraditórias: é, ao mesmo tempo sensual e infantil, simbólica e carnal, feminina e andrógina, sugere a mulher fértil (como em Klimt, uma influência provável, assim como seu amigo Egon Schiele) e a mulher-feto, força e fragilidade.

E é linda. Uma mão na vagina, outra na cabeça, como a ligar os dois polos da nossa existência. O cabelo curto fazendo contraste com a boca carnuda, o tom da pele, claríssimo, destacando-se num fundo bem escuro, como se flutuasse no ventre do nosso desejo, preparando-se para despertar com força arrebatadora na nossa imaginação.

Não tem outra palavra: é foda.


Os melhores do jazz e da eletrônica
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Daniel Benevides

Matthew Shipp

Como prometido, depois dos melhores discos nacionais e estrangeiros, duas microlistas com a seleção de cinco álbuns de jazz, feita por mim, e cinco de eletrônicos, pelo parceiro Gui Werneck:

Jazz:

Matthew Shipp – The Art of the Improviser
Miles Davis Quintet – Live in Europe 1967: The Bootleg Series Vol. 1
Vijay Iyer, Prasanna e Nitin Mitta – Tirtha
Joe Lovano Us Five – Bird Songs
Ambrose Akinmusire – When the Heart Emerges Glistening

Eletrônicos:

Ricardo Villalobos and Max Loderbauer – Re:ECM
James Ferraro – Far Side Virtual
Rustie – Glass Swords
Zomby – Dedication
Kode 9 e Spaceape – Black Sun

Ricardo Villalobos e Max Loderbauer


Os melhores discos gringos de 2011
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Daniel Benevides

PJ Harvey

Se ontem deu pra montar uma lista só entre meus favoritos e os do Guilherme Werneck, na hora de escolher os gringos foi bem diferente. Muita coisa, né?  Só coincidimos na grande PJ Harvey. Então resolvi publicar as listas separadamente (fiz com 11, de novo como um time). O engraçado é que, no fim das contas, gosto muito de quase tudo o que ele escolheu – o Sun Araw, o Kurt Vile e o Black Keys entrariam fácil na minha seleção. E, pelo que ele me disse, a recíproca é verdadeira. Então, fica como se fosse uma listona de 20 melhores:

A do Gui:

Ravedeath 1972 – Tim Hecker
PJ Harvey – Let England Shake
Black Keys – El Camino
Battles – Gloss Drop
White Denim – D
Zola Jesus – Conatus
Kurt Vile – Smoke Ring for my Halo
R.E.M. – Collapse Into Now
Sun Araw – Ancient Romans
Metronomy – The English Riviera

A minha:

PJ Harvey – Let England Shake
tUnE-yArDs – whokill
Frank Ocean – nostalgia, ULTRA
The War on Drugs – Slave Ambient
Bon Iver – Bon Iver
DJ Quik – The Book of David
Tom Waits – Bad as Me
Oneohtrix Point Never – Replica
Tinariwen – Tassili
Beirut – The Rip Tide
Shabazz Palaces – Black Up


SELEÇÃO MUSICAL BRASILEIRA 2011
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Daniel Benevides

Guilherme Werneck (editor-executivo do site da MTV) é meu amigo desde que trabalhamos juntos no site da Trip, há dois anos. Mas é como se nos conhecêssemos há uns 30. Ao menos quando a gente fala de música. Dá pra ficar horas e horas lembrando de bandas e nomes ao som do gelo no uísque e das melhores, mais variadas, familiares e estranhas músicas do planeta.

Outro forte ponto em comum é o gosto pelas listas. Bem, gosto talvez não seja exatamente a palavra; obsessão cairia melhor. Porque é um tal de “putz, esqueci de por fulano ou sicrano na lista!” e “peraí, ainda dá pra mudar?” Foi assim em 2009 e no ano passado, quando, depois de semanas de debates (sempre agradáveis, diga-se), fechamos os 50 melhores discos de cada ano.

As listas, como quaisquer listas, provocaram certa celeuma, tachadas de elitistas, coisa de nerd etc. Nada mais eram do que o retrato de dois gostos pessoais e idiossincráticos e, principalmente, muito diversos, indo de dub a folk, de samba a ambient, de rap a noise, de jazz a rock húngaro, de minimalistas a pop turco, de mangue bit a afrobeat sem nenhuma distinção. A gente literalmente ouve tudo (salvo talvez sertanejo – lembrando que Pena Branca e Xavantinho é música caipira!)

Dessa vez optamos por um perfil mais light, mais acessível, selecionando discos mais universalmente palatáveis e que não são difíceis de encontrar. Especialmente entre os internacionais, já que os nacionais estão ao alcance de quem realmente se dispuser a procurar – quase todos podem, inclusive, ser baixados no site dos artistas (é só clicar nos nomes abaixo), algo que já está virando praxe e mudando muito a cena do mercado musical.

Por uma questão de espaço, resolvi separar nacionais e internacionais em duas listas de onze, como um time. E, de bônus, duas microlistas de cinco, com eletrônicos (selecionados pelo Gui) e jazz (por mim).

Seguem então, os onze canarinhos do nosso escrete musical de 2011. (E amanhã, os gringos!)


1. Criolo – Nó na Orelha
2. Karina Buhr – Longe de Onde
3. Bixiga 70 – Bixiga 70
4. Wado – Samba 808
5. Gal Costa – Recanto
6. Gui Amabis – Memórias Luso/Africanas
7. Passo Torto – Romulo Fróes, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e Marcelo Cabral
8. Lirinha – Lira
9. Junio Barreto – Setembro
10. Emicida, Beatnik e K-Salaam – Doozicabraba e a Revolução Silenciosa
11. Domenico Lancelotti – Cine Privê e Caçapa – elefantes na Rua Nova (empatados)


Ave Marilyn
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Daniel Benevides

Marilyn na piscina de "Something's got to give", por Lawrence Schiller

Um livro com textos íntimos, fotos raras em que aparece seminua, revelações biográficas. Não há como errar: toda notícia nova sobre Marilyn Monroe irá despertar a curiosidade de qualquer pessoa, de carolas a junkies, de banqueiros a intelectuais.

Grande parte desse fascínio é mérito da própria atriz; mérito de suas curvas, de sua boca convidativa, de seu jeito de garota perdida na noite, que quer se encontrar nos braços de quem souber confortá-la e fazê-la sorrir, de sua voz, também cheia de curvas, infantil e provocante.

É uma adoração que se estende já por décadas, com direito a imagens sagradas, como os retratos de Warhol e a foto com o vestido esvoaçante, que teima em mostrar sua calcinha. O canto bêbado de parabéns ao presidente Kennedy já virou litania; a cicatriz revelada por Bert Stern tornou-se chaga; logo mais deve surgir algum tipo de santo sudário, quem sabe o lençol que ela usava no dia de sua morte, com resquícios de sua imaculada saliva, de seu imaculado baton…

Que o mundo inteiro é voyeur em alguma medida é óbvio. Mas porque a persistência de alguns mitos e outros não? O que realmente mantém Marylin no altar das fantasias, na cruz dos prazeres? Por que não Greta Garbo ou Rita Hayworth (pra ficar só no star system de Hollywood)?

Santa Marilyn, por Bert Stern

Morrer jovem, bela e em circunstâncias misteriosas “ajuda”, mas não explica tudo. Arrisco dizer que uma das razões está no fato de que ela se confundiu à imagem de seu tempo. Por onde se pense os anos 50 e 60, lá está ela: na política, ao lado dos Kennedy; no esporte, com o primeiro marido, o ídolo do baseball Joe DiMaggio; na literatura, depois que se casou novamente, dessa vez com o dramaturgo Arthur Miller (e mais tarde, por meio das biografias romanceadas por Norman Mailer e Joyce Carol Oates); nas artes plásticas, através de Warhol; na discussão sobre sexualidade e feminismo (Camille Paglia falava sobre o descompasso entre a encarnação do símbolo da liberdade sexual e sua real fragilidade, vulnerabilidade). E ainda há o cinema, a música e as mil teorias conspiratórias em torno da sua história breve e intensa.

Mas a adoração de Marylin tem também algo de conformismo. Mesmo ateus e agnósticos que veneram (“culturalmente”) sua imagem platinada mostram a necessidade de montar um panteão e colocar ali uma deusa. É o impulso atávico de plantar totens do “eterno” que sirvam de referência para marcar nossa transitoriedade, nossa precariedade, nossa impossibilidade de ser mais do que somos.

E em todos os sentidos não há totem (nem tabu) melhor que esse. A imagem de Marilyn tem um frescor de outro mundo. Nas fotos em que aparece seminua, como estas agora reveladas, feitas no set de “Something’s Got to Give”, filme inacabado, sente-se a temperatura de seu corpo, a maciez de sua pele, a consistência de sua carne. E isso porque ela está sempre nos chamando da jaula do inconsciente; tornamo-nos íntimos dela, é como se a víssemos todos os dias no café da manhã, bocejando de baby doll.

Você pode perguntar: e daí? Daí nada. Só me resta dizer, como todo mortal: Ave Marilyn.

 


George Harrison e o pai de Madonna e Tarantino
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Daniel Benevides

Se Elia Kazan foi o pai de Martin Scorsese, o próprio Scorsese é o pai de Madonna e Quentin Tarantino.

A primeira afirmação é fácil de explicar: Scorsese já declarou o quanto foi influenciado por Kazan, diretor dos clássicos “Sindicato de Ladrões”, “Vidas Amargas” e outros. Mais que isso, dirigiu um documentário sobre o mestre, que será exibido na Mostra de São Paulo.

Já a segunda talvez exija a locação de um DVD para entender. Foi o que eu fiz, inadvertidamente, ao ver o filme de estreia de Scorsese, “Quem bate à minha porta”, estrelado pelo amigo Harvey Keitel.

Praticamente um filme de pós-graduação, demorou cerca de quatro anos pra ficar pronto: Scorsese começou a filmar em 1965 e o título só apareceu num luminoso em 69. Isso por conta de grana, falta de tempo, dificuldade de agenda, dúvidas sobre o roteiro etc. Keitel tinha algum emprego burocrático na época e tinha de sec desdobrar para comparecer ao set, onde chegava a dormir, tamanho o empenho.

Valeu o esforço – o resultado é fascinante. Quando surgem os letreiros finais, fica a impressão de que estava muito adiante do seu tempo. Muito do que Tarantino popularizou em “Cães de Aluguel” e “Pulp Fiction” já estava lá, trinta anos antes: o uso criativo de música pop/rock/cool, os planos inusitados, nunca óbvios, a vida marginal e violenta dos personagens, o figurino vintage, as referências cinematográficas explícitas, os diálogos casuais e aparentemente deslocados, quase como sketches independentes do enredo. E por aí vai. Viciado em cinema, Quentin deve ter colocado os fotogramas desse filme numa seringa e tomado uma overdose.

E Scorsese vai ainda mais longe, misturando sexo livre à culpa cristã, imagens de mulheres e homens nus a closes de santos e Jesus na cruz, e tendo ao fundo a “piscanalítica” ‘The End”, dos Doors. A porta do confessionário se funde à porta da mulher desejada; os pés de Cristo confundem-se com as curvas de uma amante na cama; o olhar compungido de uma santa surge em fusão com uma cena de estupro. Keitel beija a imagem do Salvador e um filete de sangue escorre por sua boca. Impossível não pensar naquele famoso clipe da Madonna e seu Jesus negro, ou mesmo na forma como La Cicconne sempre misturou ícones católicos e imagens sexuais.

Relativamente pouco comentado, assim como o incrível “Alice não mo0ra mais aqui”, outro grande filme do começo da carreira de Scorsese, “Quem bate à minha porta” merece o crédito de pioneiro de uma estética que hoje virou quase regra entre moderninhos e descolados. Foda, pra dizer o mínimo.

“Taxi Driver”, no entanto, também um filmaço, continua a fazer barulho. E tem também espaço na Mostra de São Paulo, onde será exibido com cópia restaurada.

Outro Scorsese exibido recentemente no Brasil é “Living in the Material World”, documentário sobre o beatle silencioso, George Harrison. Agora no fim de novembro fará dez anos de sua morte. Escrevi há um tempo um perfil dele para a revista Vida Simples. Ficou bacana, tá aqui.

 


Neste Dia da Criança, dê um Jeff Koons de presente
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Daniel Benevides

A infância é uma região de traumas e desejos inconfessáveis, dizia Freud, mas no senso comum é também a região da felicidade perdida (o que pode ser a mesma coisa), ou simplesmente sinônimo de felicidade (o que já é bem diferente).

O superartista plástico Jeff Koons, mentor da legião do neopop, e criador de enormes balões infláveis feitos de aço, que, na melhor das hipóteses, sugerem um balanço transcendente de materiais, parece acreditar mesmo na definição mais simples.

Na sabatina da qual participei, promovida pela Folha de S.Paulo e UOL, em que o artista, um dos principais nomes da exposição Em Nome dos Artistas – Arte Contemporânea Norte-Americana na Coleção Astrup Fearnley (que tem ainda os sensacionais Matthew Barney, Cindy Sherman e o também controvertido Damien Hirst), respondeu a perguntas de críticos e jornalistas, e também do público e internautas, Koons colocou-se como o arauto da arte como autoajuda, um papel que surpreendeu boa parte da plateia presente no Auditório Ibirapuera e também meus colegas de “mesa”, os críticos Fabio Cypriano, Lisette Lagnado e a editora da Ilustrada Fernanda Mena.

Candidamente, aquele que muitos pensavam ser o Grão-mestre da ironia e cinismo, desfiou sua teoria estética de salvação: a arte, quando remete a confortadoras lembranças de um passado de idílio infantil, seria capaz de afastar a ansiedade provocada pela turbulenta contemporaneidade.

Cicciolina
Compondo a cena de seu discurso, Koons, famoso pelas polêmicas provocadas com as esculturas em que aparece trepando com a então mulher, a atriz pornô e ex-deputada na Itália, Cicciolina, envergava um terno sóbrio de pastor adventista ou consultor de marketing.

Metade do público exultava a cada exibição de slides de sua obra, que inclui um gigantesco cãozinho feito de flores e monumentais bexigas em forma de cachorro e coelho, moldadas em aço. Mais que isso, parecia exultar a cada declaração desconcertante, aparentemente ingênua, do tipo “sou um romântico”. E, pelo que eu soube mais tarde, muitos ficaram pessoalmente ofendidos com a suposta agressividade de nós, sabatinadores.

O enigma ficou instalado na garganta: afinal, Koons é um gênio, como se autoproclamava seu ídolo na adolescência, o histriônico Salvador Dali, ou uma espécie de Forest Gump, alguém que meio por acaso, sem os atributos necessários, ganhou espaço na História?

Conversando com a artista Lucia Koch, fiquei convencido de que a resposta é : nem um nem outro. Koons tem sim um lado genial, que se afirma quando vemos de perto algumas de suas obras expostas no prédio da Bienal. O estranhamento que provoca a tensão dos materiais, o aço que “flutua” e é “translúcido” (no caso dos incríveis balões), ou o suporte que se mescla à suposta escultura (caso da centopéia na escada, ambos fundidos numa só peça de alumínio), e principalmente o equilíbrio fascinante das bolas de basquete imersas num tanque de água (para muitos, sua melhor obra) fazem jus aos exaltados elogios.

Conceitual naïf
Ao mesmo tempo, fica a impressão de uma arte que é conceitual, e portanto cerebral, “inteligente”, “bem sacada”, fenômeno cínico de marketing, mas também naïf, feita de paixão juvenil e brilho involuntário (e não por isso menos impressionante). E isso mais por conta de suas justificativas à Paulo Coelho (com um quê de Walt Disney – quase perguntei se ele já tinha pensado em criar uma Koonsland, um pouco como a terra perdida de um dos ícones que retratou em porcelana, Michael Jackson).

É possível que, como disse Lúcia, ele tenha mudado em algum momento (talvez depois do sofrido rompimento com Cicciolina), tenha cansado do papel de cínico manipulador de imagens pop, e tenha preferido justamente criar um novo personagem, bem menos óbvio, bem mais provocador, que é esse Jeff Gump, esse pastor que prega a felicidade pueril pela arte, que afirma, em tom conscientemente ou inconscintemente demagógico, que o artista tem de estar onde está o desejo mais imediato do espectador, o desejo de esquecer contextos, teorias e responsabilidades, e lançar-se sem culpa à fruição de uma acolhedora infantilidade.


Nobel de literatura: ganhou o cavalo da casa
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Daniel Benevides

Uma multidão se acotovela diante de um púlpito pequeno. É nele que será anunciado, em um minuto e 43 segundos, o prêmio Nobel de literatura.

O burburinho é forte. Quem terá cruzado em primeiro a linha final? Escritor, afinal, come a alfafa que o diabo plantou. É também cavalo, como dizem as casas de aposta Ladbrokes, Unibet e outras.

Eis que uma porta alta se abre e dela surge um sujeito careca com um papel na mão. A mão dos fotógrafos, por sua vez, se agita, muitos disparam antes da hora, ansiosos demais. Desconfio que Kafka, que nunca recebeu o Nobel, teria rido de chorar da cena, um misto de pomposidade papal e certa pequenez burocrática.

Sem delongas, o sujeito lê o resultado. Lê em sueco, mas dá para entender o nome. Ganhou o favorito na casa de apostas Ladbroke. É o cavalo da casa, Tomas Tranströmer. Quem?

Procuro no ponto G, de google. Ele parece bacana. A Agulha, revista cultural de Fortaleza, tem um artigo sobre ele, de 2007. Luís Costa conta que é adorado na Suécia e foi traduzido para várias línguas. Vive isolado numa ilha, como Saramago. E teve um AVC em 1990, mas continuou a escrever e até mesmo a tocar piano, uma de suas outras atividades.

Tomas é ainda psicólogo, daqueles que vão a presídios, hospícios e casas de correção para adolescentes. A cara dele (na foto, quando jovem) é simpática.

Trecho de um de seus poemas, traduzido por Luiz Costa, em português de Portugal:

Ao entardecer,
saímos.
A poderosa pata azul
escura da meia ilha jaz expelida sobre o mar.
Embrenhamo-nos na
multidão, somos empurrados, amigavelmente,
suaves
controlos,
todos falam,
fervorosos, na língua estranha.
“ Um homem não é uma
ilha “
Por meio deles
fortalecemo-nos, mas também por meio de
nós mesmos. Por meio
daquilo que
existe em nós e que
o outro não consegue ver. Aquela coisa
que só se consegue
encontrar
a ela própria. O
paradoxo interior, a flor da garagem, a válvula
contra a boa
escuridão.
Uma bebida que
borbulha nos copos vazios. Um altifalante
que propaga o
silêncio.
Um atalho que, por
detrás de cada passo, cresce e cresce.
Um livro que só no
escuro se consegue ler.

São imagens translúcidas que nos dão acesso à realidade, como diz a Academia. Há vários livros seus em inglês, mas arece que não foi traduzido no Brasil. Se  é fato, será outra correria, outras apostas. Os cavalos dessa vez, serão os editores.

 


Nirvana, REM e o Rio do suposto Rock
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Daniel Benevides

Não vi nada do Rock in Rio, o que talvez não tenha feito diferença. Pro festival com certeza não fez. Se fez pra mim, é algo que tenho que debater com meus botões. Como estou de zíper e camiseta, fica pra amanhã.

O pouco que sei foi por tabela. Li, por exemplo, o ótimo texto do Maurício Stycer. E vi a Christiane Torloni “chapadona” dando entrevista pra Globo.

O vídeo ilustra o texto à perfeição. Stycer pergunta: “cadê a rebeldia do rock”? Tá na Torloni? Tá no discurso do Dinho Ouro Preto? No “merchan” do A. Kiedis? Tá no rock macarrônico do Mike Patton?

Mais fácil encontrar rebeldia na Rihana. O que me leva ao Nirvana e ao REM.

Duas bandas irmãs, duas bandas incríveis, mas que de certa forma, e involuntariamente, como lembra o filósofo José Rodrigo Rodriguez, talvez sejam responsáveis pela pasmaceira reinante.

Isso porque foram eles (e os Pixies) que puseram melodia no punk e levaram o mundo do rock alternativo ao topo das paradas. Sem querer, deixaram que a Billboard, representante mais visível da indústria, engolisse a rebeldia, tal como Saturno a seus filhos.

Kurt Cobain, apesar de buscar conscientemente o sucesso, nunca se deu bem com essa idéia depois que ela virou realidade. Seu espírito autodestrutivo se revelou em shows como aquele do Hollywood Rock em São Paulo, em meados dos anos 90.

Eu trabalhava na MTV nessa época e vi ele de perto. Um cara bacana, franzino, de ombros curvados e uma expressão inofensiva, mas com um ligeiro brilho maníaco no olhar.

Seus parceiros, Dave Grohl e Krist Novoselic, com quem conversamos (o grande reverendo Fabio Massari e eu, atrás da câmera) pareciam viver num suspense contínuo, sem saber quando o coração de “Kurtz” Cobain mergulharia nas trevas.

Foi um show inesquecível. Não no sentido positivo, pelo som, mas pela visão de um sujeito de grande talento perder o controle (ou controlar sua perda) e chutar, socar, espatifar o balde. A gente não sabia, mas talvez desconfiasse: era um dos muitos sintomas de um suicídio anunciado.

Nevermind, o disco-razão de tudo isso, fez 20 anos. Hoje toca em elevador de shopping. Precisa dizer alguma coisa?

Um dos interlocutores de Cobain era Michael Stipe, vocalista e letrista do REM, a quem ele admirava. O REM foi por muito tempo afinal, bem antes de Losing my Religion, uma autêntica banda de garagem com cérebro, um “rótulo” que não ficaria mal no próprio Nirvana.

Não lembro se conheciam-se bem, lembro que se falavam muito ao telefone. Depois veio o tiro no céu da boca, o bilhete mítico, o novo belo cadáver do pop (hoje já substituído por Amy W.)

 

 

E agora o REM acabou, deixando muitos órfãos. Não me incluo entre eles, ainda que concorde com a amiga Nina Lemos: o quarteto de Athens fez a melhor trilha (ou uma delas) da nossa geração.

Na verdade achei bom que o REM tenha acabado. O mundo está mais careta. É preciso encontrar novas formas de rebeldia. E o REM conseguiu atravessar esses tempos sem um único disco ruim no currículo (e com pelo menos duas obras-primas).  É muito mais do que fez a maioria das bandas.

Os três (já que em 97 um aneurisma levou o batera Bill Berry de volta pra roça) devem ter cansado: do rock, das longas turnês na estrada, da convivência forçada entre eles,  das obrigações contratuais, de gritar para os surdos.

Tô escrevendo em círculos, mas a palavra que liga tudo isso acho que é autenticidade. Algo não muito fácil definir, mas que tanto o REM como o Nirvana  tinham de sobra e faziam questão de não perder.

Pra isso, a saída de um foi o suicídio. A de outro foi a permanência digna no palco, sem abrir mão de seus princípios.

O REM já tocou no Rock in Rio, na terceira edição, assim como Grohl e seu Foo Fighters. Foi um grande show, como quase todos do REM que se tem notícia. Não sei se Christiane Torloni estava lá.

Eu não vi.


PARA QUÊ SERVEM OS PRÊMIOS?
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Daniel Benevides

Passou uma semana ou quase isso e eu não consigo tirar da cabeça o prêmio dado a Keith Richards de melhor escritor do ano pela revista GQ (a inglesa).

Como fã dele achei divertido. Mas aquilo me incomodou, por mais que o prêmio em si não tenha muita importância.

Talvez porque seja mais um exemplo de como o cinismo e o oportunismo florescem com tanta facilidade no meio cultural (e em todos os outros meios).

Qual deveria ser, afinal, o papel de um prêmio? Em primeiro lugar, incentivar novos talentos, que precisam desse tipo de exposição para serem conhecidos. Em segundo, reconhecer a excelência de um trabalho, seja de um veterano ou de um novato. Qualquer outro motivo me parece pouco honesto.

“Vida”, a autobiografia de Keith, é legal, um adjetivo que significa igualmente legítima e bacana. Mas tá longe de ser literatura, boa ou ruim. A ironia maior é que ele talvez não tenha nem escrito uma linha, já que há um parceiro jornalista no projeto, que teria feita toda a exaustiva pesquisa sobre sua vida.

Keith deve olhar o prêmio na sua estante e rir sozinho. Ainda mais ele, que se diz leitor e já citou James Joyce em entrevistas.

É evidente que a revista quis premiar a si mesma, chamando a atenção do público, buscando a visibilidade pelo choque fácil. Basta ver que deram o prêmio de melhor músico ao renascentista Hugh Laurie, o House (que por acaso também escreve livros). E ele é bom, de fato, mas o melhor? Dificilmente.

A gente vive soterrado pela avalanche midiática diária, que às vezes nem se dá conta de como os valores são frequentemente trocados pelos interesses.

Até o Nobel e em escala menor o Jabuti, vira e mexe surgem com escolhas duvidosas – no caso do Nobel nunca por razões cínicas ou financeiras, mas políticas (ou “humanísticas”), o que também não serve para o debate cultural honesto. O fato de Borges ter apoiado a sangrenta ditadura argentina – fato em si lastimável – não faz com ele deixe de ser o escritor latino-americano mais influente do século 20 e portanto merecedor do Nobel, o qual nunca recebeu (assim como Joyce, Kafka, Proust…a lista é grande).

Eu lembro que o (mais que justamente) cultuado Roberto Bolaño falava de como os prêmios eram importantes pra sua carreira. Por um tempo, eram os prêmios que o sustentavam. Ele chegava a se inscrever, usando pseudônimos, em dois ou três concursos de literatura ao mesmo tempo. E ganhava muitos.

Se a GQ inglesa queria fazer da premiação uma vitrine para si mesma, poderia ao menos criar categorias mais condizentes com seu intuito, originais, engraçadas, divertidas. No lugar deles, eu daria, por exemplo, o prêmio de fato banal mais importante do ano para as fotos da linda Scarlett Johansson. Por três dias, o corpo nu da musa roubou a cena de todas as manchetes do mundo e ainda movimentou o FBI. Afinal, a gente não quer só comida, a gente quer a bunda e os peitos da Scarlett.

Longa vida a a Scarlett e Keith, mas também longa vida aos prêmios autênticos, especialmente os literários – quem já escreveu um livro, sabe como é difícil, solitária e mal remunerada a atividade de Thomas Mann e Patativa do Assaré.