Blog do Daniel Benevides

Os metais de Herbie Hancock, o alquimista
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Daniel Benevides

Conversei com Herbie Hancock há mais de um mês, para uma entrevista que saiu na revista Serafina, da Folha. Do texto final ficou de fora um trecho em que ele explica, em detalhe, como montou a seção de metais inovadora no disco Speak like a Child, que ele diz ser seu favorito:

Chamei alguns músicos em que confio, como o Joe Zawinul, e disse que eu queria um instrumento agudo que pudesse tocar as notas mais baixas, um médio e um grave que fosse capaz de atingir as mais altas. Ele me aconselhou a usar a flauta contralto, que vai mais baixo que a flauta normal e o flughehorn, que é bom porque se mistura bem, não fica ''grudando''. Aí pensei em fechar o trio com a tuba, mas o Miles (Davis) me soprou no ouvido: ''por que você não experimenta o trombone baixo? Tem dois rotores, atinge as notas mais baixas e as mesmas que o trombone normal.''

Escolhidos os instrumentos, decidi que não queria uma harmonia simétrica, paralela, com os metais tocando as mesmas notas, eu queria que cada um seguisse uma linha diferente, como nos arranjos do Gil Evans, que eu adoro (às vezes ele colocava a tuba tocando a mesma melodia do baixo, o que causava um belo efeito). E então o Zawinul me aconselhou a fazer cada parte cantável, e para eu não me preocupar se isso atropelasse a harmonia, pois, segundo ele, não vai parecer um erro, por conta da força da melodia.

Para complicar, ele sugeriu  também que eu não compusesse ao piano, que eu usasse apenas minha cabeça. Tipo Beethoven! (risos) Tinha de ser muito cuidadoso, muito específico, foi muito desafiador e… funcionou! E aconteceram coisas novas no estúdio também. Quando o Thad Jones (flueghhorn) estava tocando a escala cromática para esquentar, percebi que ele botava o acento em outras notas, o que adorei e pus no disco.  Enfim, o principal é  que tudo soasse diferente, como uma orquestra, e deu certo!

PS: tentei traduzir as expressões técnicas da melhor maneira que pude, se houver algum erro, me corrijam, por favor!


As polaroides de Gainsbourg
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Daniel Benevides

Tive o prazer de ser convidado pela Cassiana Der Haroutiounian para escrever no seu ótimo blog de fotografia Entretempos . Resgatei o texto:

Jane, par Serge

Lembro até hoje da sensação de segurar uma máquina polaroid nas mãos.

Era um formato estranho, anguloso, com uma fenda horizontal na frente, que mais parecia a boca de um sapo. Branca, tinha, se não me engano, umas faixas em preto, amarelo e vermelho.

Meio teletransportadora, a máquina atingia o ser ou objeto à sua frente com um raio, e o aprisionava em duas dimensões; alguns segundos depois, o sapo mostrava a língua.

Uma moldura branca, feita de algum tipo de papel duro, envolvia uma superfície indefinida, que parecia meio molhada.

Segurando com os dedos em pinça na borda, abanávamos a foto com ansiedade, eufóricos com a mágica que se faria.

De repente, como se viesse do fundo de um lago, conseguíamos divisar pequenos indícios de que uma imagem estava se formando. Era realmente mágica, não tinha outra explicação.

Em menos de um minuto se dava a revelação – e, por mais que já soubéssemos o que seria, era sempre uma revelação, como se víssemos os futuro na borra do café, ou nas entranhas de uma ave.

Bem, tudo isso para contar do meu fascínio pela polaroid. E qual não foi minha surpresa ao ver as imagens que Serge Gainsbourg, de quem sou (ou era) um humilde discípulo, havia feito com aquele mesmo aparelho que tanto havia marcado minha pré-adolescência?

Minha admiração pelo autor de “Je t’aime moi non plus” aumentou ainda mais. Quer dizer: ele pintava e desenhava bem, escreveu um romance, havia criado um estilo até hoje único na história da música pop, tinha casos com as mulheres mais lindas do planeta e ainda era craque na polaroid???

Essa imagem da musa Jane Birkin é minha favorita. Tanto quanto o próprio Gainsbourg, que era uma versão dândi do sujeito dividido entre suas porções Jeckyll e Hyde (brilhante e canastra, romântico e misógino, lírico e cínico, pai amoroso e alcoólatra canalha, velho rabugento e doce como uma criança), Jane curvada sobre o próprio corpo nu provoca impressões as mais diversas e aparentemente contraditórias: é, ao mesmo tempo sensual e infantil, simbólica e carnal, feminina e andrógina, sugere a mulher fértil (como em Klimt, uma influência provável, assim como seu amigo Egon Schiele) e a mulher-feto, força e fragilidade.

E é linda. Uma mão na vagina, outra na cabeça, como a ligar os dois polos da nossa existência. O cabelo curto fazendo contraste com a boca carnuda, o tom da pele, claríssimo, destacando-se num fundo bem escuro, como se flutuasse no ventre do nosso desejo, preparando-se para despertar com força arrebatadora na nossa imaginação.

Não tem outra palavra: é foda.


Sadismo de pai pra filho
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Daniel Benevides

Laurence Olivier e Dustin Hoffman em The Marathon Man

De louco todo dentista tem um pouco. Meu amigo Luiz Thunderbird é dentista, o que reforça a impressão. (Se alguém precisar de mais exemplos, lembro que meu caro Formiga, repórter de esportes radicais na ESPN, também escarafuncha molares nas horas vagas)

Talvez por isso eu ache mais difícil me ajustar a um dentista do que comprar sapatos. Conheci o Dr. Armand por indicação de minha mulher; tendo a confiar nas indicações dela por conta de seu temperamento rigoroso, crítico e sua capacidade de discutir de igual pra igual com qualquer profissional, seja ele neurocirurgião ou químico.

Fato é que simpatizei com o sujeito de cara. Sua família vem da Armênia, o que lhe dá um toque de exotismo. (Até hoje não chequei se a Armênia de fato existe, como país reconhecido pela ONU – desconfio que não, o que só aumenta minha simpatia). E ainda por cima ele é a cara do Neil Diamond. Se começasse a cantar com gestos efusivos eu não estranharia.

Ocorre que Dr. Armand da Armênia tem, como todo dentista, um pai dentista de quem herdou o consultório. Mas no caso dele, herdou o consultório com o pai dentro. Trata-se de um velhinho vigoroso, de orelhas enormes, tufos fartos de pelos no nariz, que denuncia sua presença por sinistros ruídos que irrompem detrás de uma portinha no fundo. O que estará maquinando?

Nunca o tinha visto direito. Ele entrava e saía misteriosamente, como um atarefado funcionário do castelo de Kafka, fazendo a portinha, pivotante, balançar pra lá e pra cá. Até que o filho, para agradar ao pai ou por insegurança, decide convocá-lo para ajudar no meu caso. Súbito estavam os dois narizes enormes apontados pra mim. Encimados por olhares de especialistas, as duas gerações de apêndices nasais fugidos de um conto de Gógol, discutiam os procedimentos de tortura, como se eu fosse uma árvore à qual precisasse cortar um galho e não um ser humano aterrorizado.

Amputação
Tentei pensar nos soldados feridos da Guerra Civil Americana, que tinham suas pernas amputadas sem anestesia, à base de uísque e porrada na cabeça. Não adiantou. Por mais simpáticos que fossem os odontológicos armênios, me senti como uma cobaia na ilha do Dr. Moreau ou como se estivesse numa mesa de dissecação dentro de um OVNI. Acostumados à intimidade caseira, não tinham pudores em dizer que a broca tava esquisita ou que não tinham certeza se daria pra consertar o dente etc. Pra piorar, começaram a discutir. Não é assim que se faz, deixa que eu faço, dizia um. Tá errado, bradava o outro, ao que acrescentava: “você atingiu a gengiva sem necessidade. Eu te disse pra usar o outro alicate!”. Armand, com a respiração curta e gestos bruscos, ansiava por mostrar ao pai que era capaz; este, por sua vez, retrucava com o enfado impaciente de quem acumulou décadas de experiência.

Eu olhava pros dois e começava a ficar confuso, como se fossem a mesma pessoa convivendo em alguma curva estranha de tempo. Imaginava seus antepassados, pastoreando cabras e colhendo olivas. Ao mesmo tempo, sentia a respiração como se eu tivesse diante do monolito de 2001, uma odisséia no espaço. Em algum momento ouvi o mais novo dizer: “cruze os dedos pra que dê certo”. Tive então certeza de que não daria. Dito e feito: dissipada a alucinação, vejo o pai sentado, desolado com o resultado, dizendo que teriam de repetir tudo.

Pensam que saí correndo? Se o sadismo é ilimitado é porque há um masoquismo que o alimente. Pedi uísque. Riram. “Pode bochechar com aquele copinho, se quiser”. Apertei o apoio da poltrona com força e, sentindo-me um heroi da resistência, disse: “Recuso a venda, podem atirar”. E eles atiraram. Ao fundo, Paolo Conte cantava “Via con me”. Foi a última coisa de que me lembro.


Livros que matam
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Daniel Benevides

Foi em Paris, em 1888. Ao buscar um livro na estante mais alta de sua biblioteca, o renomado pianista Charles-Valentin Alkan deu seu último suspiro, soterrado pelo peso de centenas de grossos volumes. Pode-se dizer em seu caso que a busca pela sabedoria saiu-lhe muito cara.

Talvez inspirado nessa lenda urbana, o catalão Enrique Vila-Matas imaginou um livro que provocasse a morte de quem o lesse. La asesina ilustrada, compreensivelmente, afugentou muitos leitores, quando lançado em 1977. Há quem diga que o sortilégio literário funcionou pelo menos duas vezes, mas os relatos são inconclusos.

Claro, há Os sofrimentos do jovem Werter, romance mais bem sucedido se considerarmos a premissa de Vila-Matas. Rejeitado pela mulher amada, o personagem inventado por Goethe se mata  . Tal gesto porém, saiu das páginas e atingiu centenas de jovens reais, os quais, profundamente movidos pela intensidade de sentimentos descrita, resolveram também por fim a suas vidas. Se a moda foi passageira, deixou marcas eternas.

Menos líricos, mas não menos intensos, muitos sábios chineses preferiram a morte a desfazer-se de seus livros, então proibidos pelo imperador Qin Shi Huang (o mesmo que construíra a Grande Muralha, cerca de duzentos anos antes de Cristo). Para ele, só prestavam livros que falassem de medicina, agricultura e previsão do tempo (Paulo Coelho e Zibia Gasparetto não teriam vez).

Distração diante da guilhotina

Marat também estava lendo quando foi surpreendido por sua assassina

Algumas dessas histórias estão no livro Fantasmas na Biblioteca, de Jacques Bonnet. Um dos maiores colecionadores do mundo, ele tem uma biblioteca de cerca de 40 mil volumes. Bem humorado, conta na sua autobiografia biblioliterária como construiu esse “paraíso na Terra” (na descrição de Borges) desde os tempos em que tinha de acondicionar suas preciosas raridades em estantes no banheiro e na cozinha, por falta de espaço.

As anedotas lembradas por Bonnet são muitas, entre elas a ocorrida em plena era do Terror, na Paris de Robespierre. No caminho para a guilhotina, levado pelos guardas, um aristocrata seguiu carregando um livro, o qual lia compenetrado, alheio aos gritos da multidão. Antes de ter a cabeça cortada, pediu ao carrasco que o deixasse terminar a página. E assim foi. Diante do interesse que desafiava a própria morte, é de se perguntar, até com certa avidez: que livro seria esse?

Mas a minha favorita é a do historiador e escritor Valincour (sucessor de Racine na Academia Francesa), um primor de sabedoria e estoicismo elegante. Após ver-se destituído de todos seus livros, queimados num incêndio que atingiu sua gigantesca biblioteca, disse, simplesmente: “Meus livros não teriam valido nada se eu não tivesse aprendido a viver sem eles.”


Os Miseráveis e a invenção do cinema
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Daniel Benevides

cena do filme dos irmãos Lumière sobre Os Miseráveis

Quando Victor Hugo morreu, em 1885, faltavam dez anos para o cinema ser inventado. Ainda assim, o autor oceânico teve uma participação nada desprezível nos anos pioneiros da sétima arte; não exatamente ele, mas aquela que é considerada sua obra-prima, Os miseráveis.

Em primeiro lugar, uma coincidência: o primeiro dos cinco volumes originais do livro foi lançado em 1892, há 150 anos, mesma data de nascimento de Auguste Lumière, o mais velho dos irmãos que criaram o cinematógrafo, aparelho que, ao projetar imagens em movimento, espantou o mundo (literalmente: teve gente que saiu correndo da sala, aterrorizada com o trem que avançava na tela).

A dupla fraterna de inventores realizou vários filmes curtos, muitos deles mostrando cenas quotidianas. Alguns, no entanto, já apontavam para o embrião de uma arte narrativa. Destes, destaca-se justamente Victor Hugo et les principaux personnages des misérables, de 1897, breve resumo visual do livro, há muito um sucesso transcontinental.

Dez anos depois, a fascinante e injustamente pouco conhecida Alice-Guy Blaché, não apenas a primeira mulher a dirigir filmes, como também a primeira a dirigir um filme com estrutura narrativa (sobre a vida de Cristo) produziu uma versão cinematográfica de um dos capítulos do livro de Hugo, Sur la Barricade. (Ela ainda seria atriz, pioneira na criação de efeitos especiais, efeitos sonoros e também a primeira mulher a ter seu próprio grande estúdio cinematográfico, The Solax Company, nos EUA pré-Hollywood.)

cena do filme de Alice-Guy Blanché

Cerca de meia centena de outras adaptações de Os miseráveis para a telona (e mais um tanto para a telinha) foram lançadas nas décadas seguintes. Entre elas, a de 1935, com Fredric March e Charles Laughton, foi, quase oitenta anos antes do atual megasucesso, a primeira a ganhar uma indicação de melhor filme para o Oscar. O francês Claude Lelouch lançou uma versão peculiar do romance em 1995, com idas e vindas no tempo e efeitos narrativos do tipo “filme dentro filme”. Com Jean-Paul Belmondo, ganhou o Globo de Ouro na época, de melhor filme estrangeiro. Em 1998, o sueco Billie August também tentou a sorte com uma adaptação em Hollywood; no entanto nem o elenco estelar (Liam Neeson, Claire Danes, Uma Thurman) nem as críticas favoráveis tornaram o filme o sucesso que a versão atual vem atingindo.

No Brasil
Cineastas soviéticos, japoneses, mexicanos, egípcios, italianos, indianos, turcos e outros tantos também fizeram sua interpretação  cinematográfica do duelo mortal entre Valjean e Javert. Há até duas versões brasileiras! Ambas para a TV: uma dirigida por Dionísio Azevedo em 1958, com o brejeiro Rolando Boldrin no elenco; a outra de Walter Negrão, realizada em 1967, com Otávio Augusto (no papel de Valjean, salvo engano) e um certo Sílvio Abreu (!).

Haveria muito mais a falar sobre a fantástica permanência do livro de Hugo no imaginário popular – além dos filmes e musicais, há peças de teatro, “sequências” literárias, séries de TV (a vintage O fugitivo foi diretamente inspirada no romance) e revistas em quadrinhos com as desventuras de Fantine e Cosette. Chama a atenção, porém, uma adaptação de 1937 para o rádio – isso porque o diretor, produtor, roteirista e ator principal era ninguém menos que Orson Welles. Certamente ele, que também tinha uma atuação “oceânica” na cultura, deve ter se espelhado um pouco na imensa figura de Victor Hugo.


Só o vinil salva
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Daniel Benevides

É um ritual.

Depois de fuçar em prateleiras apertadas em sebos, leva-se as aquisições pra casa com a ansiedade de colocá-las no prato e saboreá-las. Mas antes é preciso tirar o disco do encarte e avaliar seu estado; normalmente ele vai para a pia, para ser lavado com água, detergente e o lado macio da esponja, para então ser deixado no escorredor. O efeito é de ready-made: aquele objeto mítico, incoerente em meio a cumbucas e talheres, torna-se um totem, a promessa de um segredo revelado, de uma viagem ao redor do martelo, da bigorna e, principalmente (para efeitos de metáfora), do labirinto.

Seco, ele, o artefato negro, envelhecido pelo uso, mas intacto em sua preciosidade, revela as rugas entre os sulcos, microrriscos, tênues melomas melômanas, manchas quase imperceptíveis. Com as mãos nas bordas, vem o encaixe no toca-discos, o apertar de botões e acender de pequenas luzes, o posicionamento do braço sobre a primeira faixa e o suave pousar da agulha. E então alguns ajustes no mixer, no volume, nos baixos e agudos, algo simples.

O que se dá é um antídoto à nossa vida insubstancial: o Long-Play é um objeto de nostalgia sim, mas não dos tempos de juventude de quem hoje tem mais de quarenta anos; o disco de vinil representa a nostalgia do aspecto tátil, visual, lúdico da reprodução musical; representa também um momento em que as coisas têm causa e consequência claras (a agulha vibrando nos microssulcos e produzindo um sinal elétrico que, amplificado, ganha vida enquanto canção, sinfonia, Jam session, explosão); mais que isso: a valorização daquele instante, um instante que não pode ser levado pro carro ou pro skate, muito menos pro trabalho, ele só existe com aquela importância, aquela clareza sonora ali, naquele espaço, depois daquele ritual.


Gosto também da brevidade dos lados de um LP, o que impede que se deixe levar pela distração e se jogue a música para o fundo da sua percepção. Os 15, 20 minutos de um lado A ou B são perfeitos para o foco auditivo, para a completa imersão nos sons, com atenção aos detalhes, às texturas, à dinâmica, às letras. As capas, contracapas e encartes, essenciais para uma verdadeira audição, servem de guia e complemento estético.

É o oposto da “nuvem”, da compressão virtual, volátil, inexpressiva. (Que tem também seu valor, de outra ordem, bem mais pragmática, muleta para a ansiedade, atalho para a curiosidade). É melhor que o CD, pelo tamanho e qualidade sonora. E durabilidade.

Esse ano, como os anos anteriores, pratiquei o ritual vinílico várias vezes, cada vez com mais frequência. Passaram pela minha  capenga mas fiel Technics MK-2 pérolas de Macalé, Alceu Valença, Lee Halzelwood, Serge Gainsbourg, Miles, Eric Dolphy e Coltrane, Meters e James Brown, novidades como Tame Impala, Animal Collective e Beach  House, eruditos como Mahler, Stravinski e Philip Glass, surpresas incríveis do quilate de um Pedro Santos, sons fantásticos da África, Colômbia e Indonésia.

O que mais se pode querer?


As 135 vozes de Moby Dick
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Daniel Benevides

Para uns a Internet é a salvação, para outros o demônio. Nem um nem outro, claro. Como em tudo na vida (desculpe a platitude), é preciso saber escolher. E antes, saber procurar. O breve nariz de cera é só para falar do projeto Moby Dick Big Read, uma dessas coisas geniais que volta e meia a gente encontra na rede. A ideia é bem simples: publicar a cada dia um dos 135 capítulos da famosa história da gigante e misteriosa cachalote branca lidos por gente bacana como Tilda Swinton, que se encarregou perfeitamente do primeiro, Neil Tennant, dos Pet Shop Boys, e Nathaniel Philbrick, que escreveu um livro sobre a aventura que teria inspirado Herman Melville. O resultado é fascinante, uma babel de vozes as mais diferentes, cada qual com sua inflexão própria, idiossincrática, sotaques variados, ritmos e pausas particulares, ênfases e velocidades múltiplas. Para tornar tudo mais interessante, cada leitura vem acompanhada da ilustração e/ou vídeo de um artista diferente. Enfim, para justificar o começo do texto, a blasfema Moby Dick pode ser entendida como símbolo de muita coisa, inclusive da…internet.


Dois grandes filmes. Ou: o que Tilda Swinton e Nanni Moretti têm em comum
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Daniel Benevides

Definitivamente os italianos têm estilo – ao menos no cinema. Antonioni e Bertolucci, por exemplo, são dois incapazes de um plano chocho, sem graça. A lista é grande, e inclui Fellini, Argento, Bellocchio e tanti altri.

A cada filme, Nanni Moretti mostra que está nessa liga. Seu Habemus Papam é dos filmes mais elegantes e inteligentes dos últimos anos. Para começar, porque consegue a façanha de ser engraçado de chorar de rir e ao mesmo tempo profundamente melancólico. Complexo e propenso a várias interpretações, é de uma ironia demolidora com o Vaticano, mas também respeita, de alguma forma, o insondável da espiritualidade.

Ver os pomposos e hipócritas cardeais brigando num jogo de cartas e se esfalfando num torneio improvisado de vôlei, ou ainda cantando e dançando ao som de Mercedes Sosa, enquanto esperam a recuperação psicológica do papa recém-eleito é dos grandes momentos do cinema atual. Buñuel deve ter gargalhado do túmulo.

O francês Michel Piccoli oferece uma das melhores interpretações da sua carreira. Seu olhar de cansaço e perplexidade quando se vê nas vestes do sumo pontífice; seus acessos de pânico e irritação desesperada; sua nostalgia de uma juventude nunca aproveitada; seu gentil enfado com as manifestações de adoração inútil…Tudo nele é de uma grandeza humana que nos deixa pensativos e comovidos, entre as risadas proporcionadas por Moretti, no papel do psiquiatra (obviamente ateu) contratado para levantar o ânimo do papa.

Tilda
Tilda Swinton, em Um sonho de amor (péssima tradução para Io sono l’amore), também faz um dos melhores papéis de sua vida. E o diretor Luca Guadagnino desponta como bela promessa, mostrando as mesmas qualidades do melhor cinema italiano. Num ambiente aristocrático, imerso em rígida etiqueta e portanto algo claustrofóbico, uma família vai ruindo à medida em que os valores tradicionais vão dando espaço às liberdades de escolha.

Mãe de postura digna, mas que também sabe ser afetuosa, linda como nunca (Swinton é multiforme: consegue ocupar todo o espectro estético, da beleza à feiura), ela se apaixona pelo melhor amigo de seu filho favorito (e talvez mais do que isso, não fica claro), um jovem chef, tímido e talentoso, figura solitária e misteriosa. O que se segue é uma tragédia grega com as cores da discrição cheia de receios da alta burguesia. Não há gritos, mas sussurros; o choro é silencioso, as discussões são secas, o figurino nunca deixa transparecer o desalinho dos sentimentos. Em contrapartida, o amor é solto, naturalmente selvagem, inocente até, mesmo em sua intensidade quase incestuosa. A trilha é extraordinária, de autoria de John Adams, talvez o maior compositor vivo de música erudita contemporânea.

São dois filmes no fundo parecidos. Descascam a pompa dos poderosos e revelam a angústia dos que, presos na teia das aparências, anseiam por liberdade de sentimentos, desejos e atitudes.


A semântica do blowjob. Por que blow? Por que job?
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Daniel Benevides

Christopher Hitchens era um cara divertido, mesmo com todo seu direitismo tardio. E corajoso. Seu relato dos últimos meses de vida é uma aula de estoicismo consciente.

Os que conviveram com ele são unânimes em dizer que era imbatível na conversa, no charme e na memória. Profunda e diversificadamente culto, era capaz de discorrer sobre qualquer coisa com graça e consistência.

Na compilação dos seus ensaios, Arguably, há grandes momentos sobre literatura e trechos provocativos, no melhor dos sentidos, sobre religião e política.

E também, na tradição filosófico/anedótica do Mitológicas de Barthes, textos fascinantes sobre qualquer coisa. E o popular blowjob é uma delas.

Hitchens se pergunta: afinal, por que blow? E por que job? Suck não seria mais apropriado? E aí envereda por uma série de argumentos tão eruditos quanto engraçados, com bons exemplos à guiza de ilustração, tirados de Nabokov (Lolita), Auden e Leonard Cohen (Chelsea Hotel), entre outros.

Uma das explicações seria que antigamente, para se referir ao ato que estranhamente chamamos de “soprar”, se falava na Inglaterra em “below job”. A contração seria uma consequência da forma sorrateira com que a expressão era pronunciada.

Outra possível razão adviria dos primórdios do jazz, gênero ainda subterrâneo nos anos 30, que forneceria os elementos para a metáfora óbvia. A imagem do “trabalho de sopro” teria sido então adotada pelos gays, como código, numa época em que soprar o saxofone ou a flauta de outrem era considerado perversão da grossa (a depender do instrumento, claro).

Hitchens vai mais longe e se pergunta também por que se diz que alguma coisa “sucks”, querendo com isso dizer que é algo ruim. Mas não é bom? Nós aqui usamos como xingamento, especialmente em jogo. (E já que mencionei o jeitinho brasileiro, não custa lembrar que somos muito mais diretos no que tange o blowjob: a palavra mais usada em nossas calçadas e camas refere-se a um dos primeiros objetos de prazer na infância, sem falar na junção habitual de boca e soquete).

Outra curiosidade é que não existe a/o blowjobber – mas existe o cocksucker, que não difere tanto do motherfucker, na intenção. Mais uma vez: é bom mas é ruim?

Lovelace

E o tal do job? A razão possivelmente está no fato de os “Below Jobs” serem pagos nos idos da Rainha Vitória. Prostitutas e putos seriam exímios jazzistas nessa época. Durante as muitas guerras do século 20, quando os soldados tinham de estar prontos e alertas a qualquer explosão na esquina e/ou tão cansados que tirar a roupa seria muito esforço, a prática do pagamento ou coerção pelo tal job era bastante comum. Hitchens cita a lendária Mickey Mouth, que na guerra do Vietnã era tida como a mais habilidosa no ramo em toda a Ásia. Sem contar que era uma forma de evitar (ou minimizar a possibilidade de) doenças.

Já a palavra Fellatio é mais explícita, apesar da pose. Quer dizer aquilo mesmo, sem mais nem menos. Nos países de língua portuguesa é felação, palavra feia, que poderia ser interpretada como atitude amarga (fel+ação).

Qual seja a palavra escolhida, o sexo oral praticado em homens – o nome para o feito em mulheres, cunilingus, é mais, hum, chique – tem sua deusa. É a trágica Linda Lovelace, a engolidora de espadas em Deep Throat, clássico absoluto do pornô.

Outra figura (e essa não trágica, mas patética) que ficou nos anais do blowjob foi a estagiária de Clinton – e o próprio, que, imbuído de pudor pragmático, declarou que o prazer de ver a moça tocar seu saxofone não era música, quer dizer, sexo. E talvez não apenas para preservar o casamento e sua posição honrada, mas também por ciúme. Afinal, sua estagiária botara a boca no trombone.


VI, LI E OUVI – o melhor do fim de semana
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Daniel Benevides


Parque da Água Branca à noite
: surpreendentemente, um monte de gente, casais nas sombras, luzes coloridas, crianças gritando, peixes em alvoroço. Perfeito para fotos crepusculares com instagram.

Visit from the goon squad – o celebrado Visita cruel do tempo, de Jeniffer Egan. No Ipad, em inglês. Vantagens da tela: dicionário direto, é bom de ler no escuro e fazer anotações, buscar palavras etc. O hype tem razão: o livro é mesmo incrível, relativamente despretensioso, altamente cativante.

Zuma, do Neil Young. Na vitrola. “Cortez, the Killer” e “Don’t cry no tears” são geniais – a primeira uma obra-prima. Retrato vivo dos anos 70. Retrato vivo de qualquer época.

A mulher infiel, Claude Chabrol. Cineasta menos badalado da Nouvelle Vague, Chabrol mistura elementos de Hitchcock (tramas de suspense e tensão psicológica) e Buñuel (humor negro) ao estilo próprio, seco, intenso, perturbador, sutilmente irônico. Stéphane Audran, musa hoje esquecida, está perfeita como a mulher fria e entediada do título. Pra quem não lembra, ela é a Babette, da Festa de Babette.